Chico de Assis

Clarice Lispector.

Resumo

O foco deste artigo é dimensionar o papel da linguagem na obra de Clarice Lispector, tomando por centro irradiador da análise A Hora da Estrela, último livro que publicou ainda em vida. A discussão sobre esse papel é cada vez mais intensa no contexto da literatura moderna. Críticos, professores, historiadores e, principalmente, os escritores, dedicam cada vez mais ao tema uma boa parte do que produzem. A razão está na própria evolução do que se compreende como literatura de ficção. Edgar Nolasco assinala que, com o advento da modernidade,  “o romance não narra mais uma história e, não tendo mais o que contar, acaba narrando-se a si próprio. Ou melhor, o narrar narra-se: narra o seu próprio fracasso” (2001, p. 65).  É nessa direção que pensamos orientar nossas observações, até porque não nos parece haver no Brasil algum representante melhor da tendência referida acima do que Clarice Lispector, que diz sem meias palavras: “A realidade é a matéria-prima , a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço” (1986, p. 172).

Palavras-chave: Linguagem,  literatura; Clarice Lispector.                                                             

  1. Introdução

“Toda uma literatura contemporânea é autonímica; ela consiste em designar a si mesma como literatura, em escrever a impossibilidade de escrever” (Barthes, 2005, p. 289). Não temos dúvidas que a literatura produzida por Clarice se insere nesse contexto autonímico. A problematização do ato de escrever, suas origens, suas razões e, principalmente, as quase insuperáveis dificuldades para encontrar um significante que recubra sem lacunas o significado atravessa com certeza, senão todos os seus livros, a maioria deles.

Clarice problematiza sua linguagem, tensionando-a, questionando-a, enaltecendo-a pelo poder que ela lhe confere, e negando-a pelo fracasso permanente a que a conduz. “Eu tenho, à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais, à medida que não consigo designar”  (1986, p. 172).” Sequência desse mesmo raciocínio, ela conclui que sua incessante busca pelo indizível só  se consumará satisfatoriamente “através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu” (p. 172). Benedito Nunes pontua que “esse feeling do fracasso da linguagem acompanha, como um baixo continuo, o jogo de identidade da narradora, convertida em personagem, e de sua narrativa convertida num espaço literário agônico, tal como se nos apresenta, também, em A Hora da Estrela… …resultando tudo numa escrita errante, autodilacerada, à procura de sua destinação”  (1998, p. 45).

A consequência mais imediata  de todo esse processo, apontada pelo próprio Nunes, “é uma forma de improviso intérmino, no qual parece abolir-se a distinção entre prosa e poesia; fluxo verbal continuo, sucessão de fragmentos da alma e do mundo, já não pode mais receber a denominação de conto, romance ou novela”.(idem, p. 45). Nunes explica que tal improviso (imagem que foi buscar no impromptu musical que a ele se assemelha) se desenrola ao léu de múltiplos temas e motivos recorrentes (autoconhecimento, expressão, existência, liberdade, contemplação, ação, inquietação, morte, desejo, de ser, identidade pessoal, Deus, o olhar, o grotesco e/ou escatológico, ibidem, p. 45). Seguindo-se tal linha de raciocínio, pode-se deduzir que essa variedade infinita de temas impede a uniformização da narrativa, invalidando sua classificação nos moldes tradicionais discriminados pelos gêneros literários.

  1. Formalismo, Naturalismo, realismo: qual dessas poéticas contempla Clarice?

Se dilui as fronteiras tradicionais dos gêneros literários conhecidos – atravessando-as e transitando entre eles, na proporção direta que lhe venha a ser exigido pela multiplicidade de temas escolhidos e pela necessidade de escrever a respeito – o texto clariceano também passa equidistante dos cânones consagrados pelas escolas literárias que compunham o cenário das nossas letras, à época de sua aparição em 1944, com a publicação de Perto do Coração Selvagem. O impacto  causado por um texto que se propunha a quebrar paradigmas (ele chegou a ser saudado por Álvaro Lins, então o melhor crítico literário do pais, como “nosso primeiro romance dentro do espírito e da técnica de Joyce e Virginia Woolf” (1986, orelha de capa), associado a alusões intermitentes ao poder da palavra e da linguagem como vetores do que escrevia (“Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz o conteúdo – 1998. p.18), levou alguns a tentar situar Clarice no modelo formalista de produção literária.

Mas um debruçar mais atento sobre o conjunto de sua obra vai nos colocar a léguas de distância do jogo infindável de palavras, que se articulam e se criam a si mesmas. em que os formalistas inseriram suas concepções sobre a escritura e o fazer literário.  Para eles, esse processo se desenvolve de forma absolutamente independente dos contextos sociais e históricos que essas palavras recobririam e de onde, mediatizadas por várias inflexões, seriam efetivamente originárias.

Um rápido olhar, particularmente sobre A Hora da Estrela (sua primeira, mas definitiva tentativa de “coser para fora”, a exemplo de Guimarães Rosa em Grande Sertão/Veredas, diferentemente do “coser para dentro” característico dos seus livros anteriores), deixa-nos absolutamente livres de qualquer possível confusão. “Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer realidade” (1998, p. 17). E logo em seguida em Um Sopro de Vida, livro que escreveu simultaneamente à Hora da Estrela, mas só foi publicado depois de sua morte, diz: “Este é um livro fresco – recém saído do nada… …Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e auto-risco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever” (1999, p.16). Ou então lapidarmente:  “Escrever” existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta” (p. 16).

O que nos parece é que sejam poucos os capazes de captar os instrumentos riquíssimos de que Clarice se valeu para construir sua obra, com a meticulosidade dos obcecados e a paciência dos obstinados. A ambiguidade, a tormenta implícita a esse ir e vir da realidade ao texto e do texto à realidade, afirmando e negando,  em infinita dialética,  cada polo das várias  contradições com que se deparava para escrever, fez de Clarice uma escritora singularíssima, cuja trajetória nem sempre foi plenamente apreendida pela crítica – embora cheguem às centenas as tentativas de fazê-lo.

A definição mais abrangente e mais próxima de circunscrever as múltiplas variáveis do processo clariceano de criação, talvez seja a que nos foi dada por Massaud Moisés: “Assim, a sondagem do nada é o resultado da imersão no existencial em busca do essencial, no consciente para atingir o inconsciente, no visível para tocar o invisível, na imanência à procura da transcendência” (2000, p. 445/6). Essa trajetória, que encantou leitores de todas as idades com  seus achados,   distribuídos em quase 30 títulos publicados,  parece haver percorrido,  com inusitada competência, a trilha descoberta por Barthes, em seu permanente esforço para conceituar literatura: “Não se pode dizer que a literatura não diz nada, mas também não se pode dizer que ela diz alguma coisa ou que diz tudo… …Encontramo-nos numa região que podemos provisoriamente qualificar de impossível; não me repugna dizer que a escrita é da ordem do dizer “quase alguma coisa” (BARTHES apud NOLASCO, 2001, p. 196). Tomando por certeiras tais indicações, poderíamos afirmar que A Hora da Estrela  é um quase-romance, sobre uma quase-personagem, na quase-linguagem de Clarice Lispector!

  1. Em lugar do poema, a “poesia da linguagem”.

Pela obstinação com que trabalha a palavra – limando-a, soldando-a com outras, sondando seus desígnios, segredos e enigmas, a exemplo do que fazem todos os grandes poetas – muitos estranham que Clarice não tenha enveredado pelos caminhos da poesia. Ao menos publicado, nada se conhece dela nesse terreno. O fato é curioso, mas facilmente explicável: na trilha aberta em definitivo por Água  Viva – considerado um verdadeiro poema em prosa – mas já palmilhada em pedaços, como  em A Paixão Segundo GH e em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, vão-se encontrando, no percurso de quase toda sua obra, trechos, situações, profusão efervescente de metáforas, que constituem à perfeição o tecido onde se cose o melhor da poesia. Como classificar diferentemente, frases com a luminosidade poética das que se seguem e que se espalham nas páginas de qualquer um dos seus livros: “Estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa” (1998, 9). Ou ainda: “Então do ventre mesmo, como um estremecer longínquo de terra que mal se soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração contraído veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo – e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade um petróleo rasgando a terra – veio afinal o grande choro seco” (1998, p. 14). Ou finalmente: “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou” (1998, p.11).

Além do mais, a entrada de Clarice no cenário das letras nacionais coincide com um momento de inflexão e revisão, no mundo, de tudo que se havia conceituado sobre literatura de ficção. Era o período de Joyce, com seu Ulisses, revolucionando as estruturas formais de expressão e fornecendo um sem número de instrumentos e recursos novos para os que viviam do labor literário. A cada dia, uma nova condenação surgia, particularmente sobre a arte do romance – que teve seu fim decretado centenas de vezes. Uma das vias naturais que se abriu aos criadores de então foi se recolher ao nicho que alguns vieram a chamar de “poesia da linguagem”, a partir do qual se escrevia sobre o escrever, tratando cada um de estabelecer e formular sua própria poética, inserindo-a como peça essencial de sua elaboração literária. No Brasil, Clarice Lispector pontificou como a mais expressiva representante das nossas letras a dominar, com exímia competência e excelência de recursos técnicos, esse conjunto de novos instrumentos (fluxo de consciência, discurso indireto livre etc), pondo-os a serviço da sua angustiada e incontrolável necessidade de expressão.

4. A Hora da Estrela – ponto culminante de uma trajetória afortunada pela crítica

           Em A Hora da Estrela Clarice condensa toda a experiência acumulada em mais de 30 anos de labor literário intenso, durante os quais publicou cerca de 30 títulos, entre romances, contos, crônicas, cartas e textos de literatura infantil. Pode-se afirmar que através dele (e do seu quase complemento Um Sopro de Vida, escrito simultaneamente) Clarice atingiu um patamar superior para travar sua antiga e permanente e angustiante luta com a palavra (“a luta mais vã”, segundo Drummond). Não é por acaso que Raimundo Carrero considera o livro um “manual de criação literária. Manual de criador para criador. De quem inventa, para quem precisa inventar. (2009, p. 16).

A obsessão de encontrar a palavra mágica, que ultrapasse o real e ao mesmo tempo o antecipe (Água Viva, por exemplo, já foi visto como um resumo do que até então a autora havia elaborado e ao mesmo tempo um rascunho dos textos que estavam por vir), a busca atormentada por um significante que efetivamente recobrisse todo o significado fizeram com que toda a  longa trajetória de Clarice fosse afortunada pela crítica, unânime em ressaltar seu zelo pelo vernáculo, seu cuidado, à beira do paroxismo, com a construção de frases, sua compulsão por cortar e cortar e cortar o texto até se reduzir ao essencial, como disse que fez, na espécie de epitáfio contido em Um Sopro de Vida:  “cortei muito mais que a metade, só deixei o que me provoca e inspira para a vida: estrela acesa ao entardecer”.

Analisando A Paixão Segundo GH, Angela Fronckowiak pontua a tendência de Clarice em configurar a linguagem, enquanto meio possível e ao mesmo tempo impróprio de expressão autêntica. “A linguagem não pode reproduzir uma experiência vivida. Ela é a representação e sempre instaura ou cria um novo sentido” (1998, p. 68). Também é essa a direção apontada por Edgar Nolasco: “Cada novo livro de Clarice é uma busca desesperada pela linguagem para alcançar a última escritura impossível. Por outro lado, cada um dos livros – por ser uma construção de linguagem – representa uma desconstrução da escritura impossível buscada (2001, p. 253).  Finalmente, Carlos Nejar, em sua História da Literatura Brasileira, diz que Clarice buscou “a ficção de dupla face – uma na palavra e outra no silêncio… … Ionesco diz que o mundo impede que o silêncio fale. Clarice alcança a vitória do silêncio sobre o mundo” (2011, p. 700). Apesar de todo esse êxito, Clarice não esconde sua insatisfação com o que faz e confessa sua derrota, num desabafo a Olga Borelli: “O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Cada vez escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever” (1981, p. 35).

5. Considerações Finais

             Enquanto morre em A Hora da Estrela – por opção, como narradora (entrega o posto a Rodrigo SM); como personagem (entrega o posto a Macabéa) e como ser vivente (prenúncio de sua viagem definitiva para a morte, que se daria pouco depois de publicado o livro), Clarice ressuscita inteira em Um Sopro de Vida, livro que escreveu simultaneamente, e que termina sendo irmão siamês do primeiro. Ai Clarice volta a dirimir seu infinito duelo com a linguagem, que marcou sua existência como escritora até a morte. Talvez por isso o início lapidar: “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos” (1999, p. 13).

Clarice morreu. Mas continua viva. Ou, por coerência com o sentido de todas as formulações aqui feitas, continua “quase viva”. No que escreveu!

 

  1. Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. A Preparação do Romance – vol. I. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CARRERO, Raimundo. A Preparação do Escritor. São Paulo: Iluminuras, 2005.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. 1ª edição. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo GH. 11ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. 7ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

LISPECTOR, Clarice. Um Sopro de Vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira – vol V. 4ª edição. São Paulo: Cultrix, 2000.

NEJAR, Carlos. História da Literatura Brasileira. 1ª edição. São Paulo: Leya, 2011.

NOLASCO, Edgar Cezar. Clarice Lispector – Nas entrelinhas da escritura. 1ª edição. São Paulo: Annablume, 2001.

ZILBERMAN, Regina (org.). A Narração do Indizível – Coletânea de textos. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998.