Abraham Sicsú

Celular e aplicativos.

Olhar fixo na tela. O semicírculo roda e não para. Não há com quem falar, não há para quem reclamar. Tudo agora é aplicativo. Sinto-me um inútil. Fiz algo errado? Poderia ter ido por outro caminho? A irritação cresce e o dia fica extremamente amargurado.

Não podemos sair de casa. A recomendação é de que não encontremos gente. E, se encontrarmos, ficar distante, não se aproximar. Racionalmente entendo a determinação e respeito, mas no coração dói muito. Leva a um processo de separação que vai se aprofundando.

Não gente e aplicativos, os mantras da época que vivemos. Temos que aceitá-los.

Os aplicativos são meu maior desafio e minha maior rejeição. Não sei e nunca gostei de manipulá-los. A dificuldade começa na sua obtenção. Minutos de angústia, em que senhas e um passo a passo, sempre dito simples pelos outros, para mim se tornam um tormento. Fico nervoso ao ver rodando um ícone por minutos intermináveis. Mas essa fase eu supero.

O ruim é mesmo sua aplicação. Como todos se ancoram nesses dispositivos, ficam sobrecarregados e dificilmente conseguimos entrar e o que queremos. A depressão aumenta e a inutilidade também, além de não ter com quem reclamar. A máquina não pode ser “xingada” ou “esmurrada”. Nem virtualmente. Resta gritar bem alto, para nós, puta merda.

Desci um aplicativo de supermercado. No primeiro acesso funcionou maravilhosamente. Na semana seguinte fui utilizá-lo e a dois dias dá que está sobrecarregado de pedidos. Nada posso fazer. Nem um telefone que há no site responde. Não existe nenhum gerente para dar uma desculpa esfarrapada. A alternativa que tenho é sair de casa para comprar, proibido pela Organização Mundial da Saúde, ou continuar sofrendo na frente de meu celular.

Resolver problemas bancários é outro problema. Não existe mais aquele cafezinho agradável, nem a pergunta de como estão os filhos e netos. As aplicações vão desaparecendo no ar e nosso gerente de relacionamento nunca está disponível. Guardei para a aposentadoria, mas, parece, o vírus também corrói finanças. Não consigo me localizar nas mudanças diárias de humor de um tal de Mercado que não sabemos onde se localiza e o que realmente o move.

A impessoalidade dos processos me angustia. Não tenho a quem me queixar ou mesmo reclamar de absolutamente nada. Este mundo vai nos afastando das pessoas e nos juntando a máquinas. E elas fazem o que querem, me parece.

Teremos que conviver com isso, sem cheiros, sem abraços, sem cafezinhos, sem botequins. O mundo cibernético exige preparação e os que não foram treinados para isso estão fora.

Solidão e tristeza são a tônica. Já prevista pelo poeta e “vidente” Evaldo Gouveia em seu magistral Bloco da Solidão:

“Angústia, solidão

Um triste adeus em cada mão

Lá vai, meu bloco vai

Só deste jeito é que ele sai

Na frente sigo eu

Levo um estandarte de um amor

Amor que se perdeu

No carnaval

E lá vou eu também

Mais uma vez sem ter ninguém

No sábado e domingo

Segunda e terça-feira

E quarta feira vem

O ano inteiro é todo assim

Por isso quando eu passar

Batam palmas para mim