Ivanildo Sampaio

O grande “malandro” está de volta. O “rei” da picardia, o taco seguro na mesa da sinuca, o “professor de incrementação” para os mais jovens, está chegando às livrarias:  a Editora 34 está reeditando “Leão de Chácara” e “Malagueta, Perus e Bacanaço”,  do paulistano João Antônio, que morreu em 1996, antes de completar 60 anos, mas deixou como legado, entre outros escritos, esses dois clássicos da literatura brasileira. Grande João Antônio…

Final dos anos 60 do século passado, chegamos, eu e ele, quase ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro, para integrar a equipe de repórteres de “Manchete”. Revista semanal editada pela Bloch, então a líder absoluta de vendas no país. Que editava também “Fatos & Fotos”, “Ele & Ela”, “Pais & Filhos”, “Desfile”, “Amiga”, “Sétimo Céu” e outras tantas revistas, para todos os gostos e diferentes perfis. João Antônio saía de São Paulo após uma brilhante passagem pela “Realidade”, provavelmente a melhor e mais bem sucedida “revista de textos” já editada no país. Na revista, da Editora Abril, trabalhavam profissionais como Paulo Patarra, Luis Fernando Mercadante, Múcio Borges da Fonseca, José Hamilton Ribeiro, Eurico Andrade, Woyle Guimarães  e outras estrelas do melhor jornalismo brasileiro. No meio dessa seleção de craques estava João Antônio, que, aos 26 anos, com “Malagueta, Perus e Bacanaço”, havia conquistado dois dos mais importantes prêmios literários do país.

Chegamos ao Rio de Janeiro, eu e ele,  em plena vigência do AI-5, com todo  mundo “falando  baixinho e  olhando pra o chão”.

Como éramos, na Bloch, dois recém-chegados, dois estranhos no “ninho da patota” que na época existia em todas as redações, começamos, pouco a pouco, a revelar um certo desconforto,  que  nos invadia, em relação à direção da revista – especialmente pelo  excesso de “carioquismo” que norteava,  não apenas o conteúdo da “Manchete”, mas de quase todas  as demais  publicações da empresa. Nas sextas-feiras, tornou-se rotina sairmos juntos da Redação, na Praia do Flamengo, para rodadas de chopp no velho “Lamas”, misto de bar e restaurante, no Largo do Machado, que abrigava nos fundos um salão com quatro mesas de sinuca, uma das paixões de João Antônio. Entre canecas de chopp e partidas de sinuca, varamos muitas madrugadas. Algumas vezes, revelando nosso desconforto e falando mal dos nossos chefes.  Algum tempo depois, já mais bem adaptado, me tornei “repórter itinerante” e passei a viajar com freqüência para outras regiões do país, produzindo edições especiais que nada tinham a ver com o conteúdo semanal da revista. João continuava na redação, com seu desconforto e sua frustração. Com viagens frequentes na minha agenda, tornaram-se menos constantes meus encontros com ele, que continuava vivendo um “processo de fritura” na Redação da Manchete, onde recebeu a fama injusta de “ganhar muito e produzir pouco”.

Naquela época, poucos entenderam a razão pela qual João Antônio, vencedor de prêmios literários expressivos e bem posto profissionalmente, ter deixado São Paulo, onde conhecia cada rua e cada esquina, para ir morar no Rio de Janeiro, onde não tinha amigos nem raízes. Ele saiu de São Paulo por recomendação médica, para cuidar da saúde do filho, que, por preocupantes problemas respiratórios e crises freqüentes, precisava fugir da poluição paulistana, em busca de sol e de praia. O Rio era a melhor opção. E, talvez, a redação de Manchete estivesse muito longe do perfil profissional de João Antônio, que escrevia sobre a alma de cada personagem, não sobre a roupa que trajavam. Um exemplo: escalado para cobrir um clássico do futebol no Estádio do Maracanã, João Antônio pouco prestou atenção do desenrolar da partida. Não soube sequer quem ganhou nem quem perdeu o jogo. Sequer olhou para o gramado. Preferiu escrever sobre os personagens que foram ao Estádio, sobre o mulato desdentado, de mãos dadas com o filho, que deixou as arquibancadas chorando porque seu time perdeu. Sobre a mãe que conduzia a bandeira do seu clube numa mão e o filho pequeno na outra.  Sobre aquela imensa maioria que, de pé, nas gerais, sob o sol e a chuva, se abraçava com o alambrado do Maracanã, vendo seus ídolos apenas da cintura para baixo. Era essa gente miúda, sofrida, sem passado e sem futuro, os personagens que cativavam João Antônio.

Um dia, João Antônio acabou demitido da Manchete. Eu, que estava recém-casado e continuava sendo escalado para viagens imprevistas e imprevisíveis, resolvi, após seis anos na empresa,  pedir meu desligamento. Vivi ali bons momentos, fiz amizades, conheci terras e gentes, ganhei experiência – o suficiente para não mais me surpreender diante das grandezas e das misérias do mundo. Mas era hora de deixar as revistas da Família Bloch. Procurar no mercado algum emprego que não me exigisse viagens.

E perdemos o contato, João Antônio e eu. Fui trabalhar numa agência de comunicação, no coração de Copacabana,  que produzia, não apenas campanhas publicitárias, mas também documentários para jornais cinematográficos, audiovisuais, programas para televisão. E onde também estavam alguns ex-companheiros dos tempos de Manchete, entre os quais Fernando Cascudo, Theo Drummond, Raul Giudicelli, Flávio Damm e Nelson Santos, além de outros. Sabia, por ouvir falar, que após sua demissão, João Antônio, desempregado,  passara a beber com mais frequência. Gostava de tomar um “traçado” de cachaça com underberg, alternando com uma caneca de chopp. Acabou internado numa clínica de recuperação. Da experiência vivida, escreveu um belo texto, com o título “Casa de Loucos” (ou “Casa de Doidos”, não lembro bem), publicado na extinta revista Senhor.

Pois bem, num fim de tarde de uma sexta-feira qualquer, findo o expediente na agência, em frente a um mercadinho situado nas imediações da Praça Serzedelo Correia, em Copacabana, reencontro João Antônio. Mais magro, mais envelhecido, um cigarro na mão, pergunta se eu sabia que nos fundos daquele mercadinho havia um “reservado”, onde se bebia uma boa cachaça e  cerveja gelada e onde, naquele exato momento, lá estava cantando e tocando violão, numa roda de amigos, o legendário Nelson Cavaquinho. E já foi me conduzindo pelo braço e empurrando a porta quase camuflada do reservado. Revelou que havia se separado da mulher, que morava sozinho num pequeno apartamento ali perto, no Posto 4, que estava colhendo material para um novo livro de contos, cujo título já definira: seria “Ô, Copacabana”. Mais uma vez com personagens daquela arraia miúda que se escondia no submundo do velho bairro, com seus dramas e histórias inconclusas, seus dias tristes e sua desesperança.

Foi a última vez que vi João Antônio.

Já morando novamente no Recife, vi, nos jornais, naquele ano já distante de 1996, a notícia da morte de João Antônio. Seu corpo foi encontrado sem vida, quatro ou cinco dias após o falecimento, já em estado de decomposição, no apartamento onde morava, sozinho, naquele mesmo prédio de Copacabana. Os malandros, os alcaguetes, as marafonas, toda aquela gente sem eira nem beira, estão todos  de volta ao redor da fogueira, com a reedição, pela editora paulista,  das obras daquele paulistano bom de copo e bom de taco, que tinha, acima de tudo, além de um imenso talento,  um enorme coração.

 

Ivanildo Sampaio é jornalista