Paulo Gustavo

Umberto Eco, sempre atento e perspicaz, observa com triste ironia em uma crônica de “Pape Satàn Aleppe”: “O silêncio é um bem que está desaparecendo até dos locais a ele consagrados”. Verdade. Justamente por isso, aduz o escritor e semiótico italiano, “está prestes a se tornar um bem caríssimo” e, assim, diz ele, “Vamos chegar ao momento em que aqueles que não aguentam mais o barulho poderão comprar pacotes de silêncio”. O silêncio dia a dia se torna um luxo, e só os ricos, pelo andar da carruagem, poderão possuí-lo.

Com Eco também está de acordo o escritor e explorador norueguês Erling Kagge ao nos dizer em seu interessante ensaio “Silêncio na era do ruído” que “o silêncio é o novo luxo”, já que “vivemos na era do ruído”. Kagge, que tem um olhar de sociólogo nos lembra que “Pessoas com salários baixos trabalham via de regra em locais mais barulhentos, e as casas e apartamentos onde moram têm pior isolamento acústico. Os bem de vida moram em lugares com menos barulho e ar mais puro”. Enfim, Eco e Kagge coincidem nesta ruidosa constatação: o silêncio se tornou um luxo, portanto, raro e pouco acessível, algo incomum e fascinante pelo qual, conscientes ou não, as pessoas pagam e, quem sabe, até podem ostentar como aquele consumo conspícuo tão bem analisado por Thorstein Veblen em sua conhecida obra “A teoria da classe ociosa”.

Já entre nós, brasileiros, ocorre-me de lembrar o poeta e cronista Paulo Mendes Campos e o nosso genial Guimarães Rosa. O poeta conta, em saborosa crônica, que, diferentemente de muita gente, sempre associou o inferno a um lugar de insuportável barulho, não de chamas, e lembra que as reclamações mais desmoralizadas em nossa sociedade são justamente aqueles que demandam silêncio. Essa verdade, todos nós já a sentimos, com desgosto, nos próprios tímpanos. Por sua vez, o criador do “Grande Sertão: veredas”, atentíssimo aos sons dos gerais, nos diz em sua “opus magnum” que “o silêncio é a gente mesmo, demais”. Sua escuta do silêncio não só repertoria os sons do sertão como se vincula aos aspectos psicológicos da interação humana, pois “no silêncio nunca há silêncio”. Que o diga o próprio povo mineiro!

Talvez o caso mais emblemático de uma busca pelo silêncio perdido seja justamente o de Marcel Proust, cuja hiperestesia auditiva não só o fez se irritar com as notas de um piano do vizinho — irritação que levou para dentro de seu imortal romance — como se defender dos ruídos forrando seu quarto de cortiça, isolando-o do mundo para colocar, por assim dizer, o próprio mundo em seu gigantesco romance. Assim, graças à cortiça, ganhamos uma obra-prima onde não só a mais sublime música, mas também os mais humildes sons do cotidiano estão presentes.

Num momento de confinamento mundial em função da pandemia do novo coronavírus, já não é novidade que o silêncio acaba de voltar às grandes cidades. O mundo globalizado se despe e se despede dos seus ruídos. Ouve-se o silêncio e com ele sons esquecidos e naturais. O jejum dos ruídos habituais alimenta a própria natureza. Tanto em Paris como no pacato Poço da Panela, no Recife, o silêncio nos diz que seres humanos equivalem a ruídos. E ruídos que atrofiam e perturbam. Para certos pássaros, pesquisas apontam, como nos lembra o citado Erling Kagge, que “As notas mais baixas estão sendo substituídas por notas mais altas para que assim possam fazer frente aos barulhos criados pelo homem.” Os pássaros, com dificuldade de encontrar parceiros, estariam pondo menos ovos…

Se os humanos não passam, em razão de sua barulheira, a ser inférteis como os pássaros, há outros animais que até evitam o amor, e, sem amor, fica difícil deixar herdeiros. O amplamente noticiado caso dos pandas. Pobres pandas! Uma década de forçada castidade! Bastou que o vírus afastasse a balbúrdia humana e que a quietude do silêncio aparecesse para que, enfim, chegassem ao adiado gozo. “Ah — pensarão eles — com suas olheiras e sua pelúcia — esses humanos são uns empata-fodas!”. E, assim, entre gemidos e aconchegos, redescobrem o amor, felizes e alheios, como todos os amantes, ao mundo assustador e tedioso.

 

Recife, 8 de abril de 2020