A estrutura mundial de produção e consumo de bens e serviços entrou em coma, vítima de vírus insidioso, grão de areia que emperrou o funcionamento da sociedade termo- industrial.
O Covid-19 gerou uma crise econômica e social sem precedentes em tempos de paz. A vulnerabilidade da globalização ficou escancarada por um organismo vivo infinitamente pequeno e rápido no gatilho.
Sob a orientação da OMS – Organização Mundial da Saúde, os países tomaram medidas sanitárias drásticas para deter a pandemia. O confinamento afetou a economia de metade dos habitantes do planeta. Em que pese a tragédia humana, o tratamento de choque se revelou benéfico para o meio ambiente. Houve imediata e involuntária melhoria da qualidade do ar, graças à paralisação das máquinas térmicas movidas a energia fóssil.
Ecologistas e pesquisadores se apressaram para extrair ensinamentos das medidas de contenção da pandemia que eventualmente possam contribuir para circunscrever as mudanças climáticas.
A melhora da qualidade do ar foi o principal benefício ambiental. Verificou-se a redução de dois tipos de danos à atmosfera. O primeiro foi a baixa das emissões do dióxido de carbono – CO2, principal gás de efeito estufa – GEE, substância não-tóxica, cujo impacto na natureza é de caráter global. O segundo diz respeito à diminuição da concentração de poluentes tóxicos no ar das aglomerações urbanas submetidas ao confinamento e cujo impacto é local e regional. Trata-se de um conjunto de poluentes composto de SO2, NOx, PM2.5, COV, CH4, CO, Pb, Hg…
A melhora do ar permitiu, por exemplo, aos habitantes do Punjab ver novamente a cordilheira do Himalaia que havia desaparecido no horizonte. A redução do ruído e da circulação nas cidades fez com que os citadinos ouvissem o canto esquecido dos pássaros e presenciassem animais antes arredios ocuparem o espaço urbano – ninhadas de marrecos do Sena passeando alegremente pelo Quartier Latin, em Paris.
Os efeitos benéficos ao meio ambiente foram estimados. A poluição tóxica do ar reduziu-se de 25% a até 40%, conforme a aglomeração urbana estudada o que evitou cerca de 60 mil mortes na China e 11 mil na Europa. Sabe-se que a poluição mata 8,8 milhões de pessoas no planeta por ano – 1,1 milhão na China, 45 mil no Brasil. Quanto às emissões mundiais de CO2, elas devem diminuir entre 5% e 6% em 2020. A queda do PIB mundial também é estimada em torno de 5%.
Segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC, para conter o aquecimento global a um nível administrável, a temperatura média do planeta não poderá ultrapassar 2º C em 2100.
Para alcançar esse objetivo é preciso reduzir as emissões mundiais atuais de GEE por um fator três até 2050 (30 anos). Isso significa reduzi-las até 2050 em torno de 4% ao ano, em relação ao ano anterior.
Ora, a queda dessas emissões, em 2020, será da ordem de 5% em razão da pandemia. Ou seja, uma redução de GEE equivalente aos valores recomendados pelo IPCC. Seria como se tivéssemos interrompido o funcionamento das máquinas térmicas supérfluas do planeta durante dois ou mais meses ao ano, sem necessidade de confinamento e distanciamento social.
Como é possível constar, reduzir as emissões de GEE significa aplicar medidas econômicas regressivas. Também significa que não haverá solução ao colapso ecológico enquanto houver crescimento. Mas a crise do Covid-19 não nos prepara para enfrentar os desequilíbrios climáticos.
Reduzir emissões em 4% é um desafio gigantesco. O repto climático ultrapassa em muito a crise sanitária atual. Além de exigir uma adaptação controlada e organizada desde agora, implica em alocar vultosos recursos a longo prazo – ações necessárias que, infelizmente, não estão na ordem do dia.
A crise sanitária e a adaptação da sociedade às mudanças climáticas têm pouco em comum, exceto o fato de serem um fenômeno mundial.
A pandemia paralisou temporariamente o aparato de produção e consumo, enquanto que a segunda pretende transformá-lo radicalmente. A melhoria da qualidade ambiental temporária foi obra da paralisia econômica mundial e não resultou de uma política ecológica. A estrutura produtiva da sociedade termoindustrial resta intacta, não foi destruída por bombas. Está pronta para funcionar ao primeiro sinal.
Políticas de estímulo econômico estão previstas para terem início logo após o fim da contenção, através de financiamentos jamais vistos. A queda temporária nos preços do petróleo será um estímulo às energias fósseis. Em nome da recuperação econômica, haverá suspensão e adiamento de regulações restritivas aos danos ambientais. A retomada do crescimento, nesses moldes, poderá nos conduzir a um retrocesso ecológico. Superada a pandemia, os danos à biosfera seguirão a nefasta trajetória anterior.
A questão sanitária pode ser definida como uma crise, pois supõe que a sociedade retornará ao status quo ante.
Este não é o caso das mudanças climáticas: o fenômeno ecológico está presente entre nós e veio para ficar. Ele prospera gradativamente – elevação da temperatura, acidificação dos oceanos, aumento do nível do mar, derretimento de geleiras, perda de biodiversidade e eventos extremos como secas, inundações e ciclones….
Para contrapor esse cenário de desregulação ecológica, necessitamos criar uma nova realidade, a qual terá repercussões em todos os aspectos da vida em sociedade. Ainda não sabemos como fazê-la, da mesma maneira como não sabemos planejar em quadro recessivo – afinal, concebemos o crescimento como infinito.
A tarefa é enorme. Descarbonizar a sociedade, substituir as energias fósseis por energias eólica e fotovoltaica é um caminho. Embora não haja clareza se será possível substituir – em parte ou em totalidade, quando, em quais prazos – por energias renováveis os 14,3 bilhões de toneladas de energia fóssil consumidas anualmente no planeta. Nem indicam qual energia será empregada na produção anual e atual de 4,6 e 1,8 bilhões de toneladas de cimento e aço, respectivamente. Nem tampouco se haverá aumento ou redução do PIB. Sem falar de outras medidas necessárias, como reduzir a população das grandes cidades, voltar ao campo, diminuir os deslocamentos, aproximar produção e consumo, preservar a biodiversidade, assegurar a renovabilidade de recursos naturais, reduzir o consumo de carne de origem estabulada, diminuir e reciclar o uso de matérias primas… Há quem defenda que basta substituir as energias fósseis por renováveis.
O princípio fundamental do caminho ecológico será distinguir o essencial do supérfluo. Aceitar o crescimento do essencial e restringir o do supérfluo. Construir uma sobriedade compartilhada com abundância do essencial. Trata-se de um projeto ecológico que preserve a capacidade da natureza de sustentar uma existência coletiva frugal entre os seres vivos e inanimados, e que não seja nem precária, nem perigosa.
Dispomos de pouco tempo para nos adaptar de maneira programada e progressiva. E nos lembrar que a Terra tem apenas 13 mil quilômetros de diâmetro, distância entre São Paulo e Paris, minúsculo planeta que estará do mesmo tamanho em milhares de anos mais. Enfim, não somos “maîtres et possesseurs de la nature” como cogitou Descartes.
Tomás Togni Tarquínio, Antropólogo (Paris VII), pós graduação Prospectiva (EHESS), consultor
O texto é instrutivo e oportuno. Mas merece uma ressalva, ou talvez uma glosa, um adendo:
É inócuo falar em decrescimento econômico, ou mesmo em crescimento zero, sem colocar em pauta a necessária estabilidade da população mundial. Se a população continua crescendo, não vejo como elevar o nível de consumo essencial para os desvalidos e conter o efeito predatório da produção material – industrial e agrícola – sobre os recursos naturais e o meio ambiente.
Prezado Clemente. O impacto do crescimento da população mundial sobre o meio natural é um problema complexo e multidisplicinar. O tema não pode ser resumido à uma questão do número de habitantes.
O impacto provocado no meio natural por um Tuaregue da África ou de um pequeno camponês do Bangla Desh, comparado a um burocrata norte americano é completamente diferente em termos de danos. O primeiro mal consegue consumir 0,15 Toneladas equivalente petróleo por ano (Tep/ano), enquanto que o último alcança 7,8 Tep/ano. Sem falar no consumo per capita de outras matérias primas. Além disso, o tipo de danos provocados no ar, água, solos, etc. pelos exemplos citados é absolutamente diferente. Enquanto que o Tuaregue e o camponês do Bangla Desh provocam impactos mais locais e regionais, o do norte americano é global. No caso dos impactos locais e regionais, os meios naturais são mais facilmente recuperáveis ou regeneráveis. Enquanto que no caso dos gases de efeito estufa, particularmente o CO2, não há nada o que fazer nos próximos 200 anos, ou mais. O impacto do número de habitantes não pode ser tratado de maneira genérica, como se todos os seres humanos provocassem o mesmo tipo de impacto. Há que ver caso a caso, por grupos sociais. O impacto dos urbanos pobres das grandes metrópoles é diferente dos pobres rurais. Os danos causados a vivo e ao inanimado são diferentes de acordo com as categorias sociais da população. Marcel Mazoyer estima que o número de pequenos camponeses no planeta esteja entre 2,8 e 3,0 bilhões de habitantes. O maior contingente de trabalhadores do mundo, cerca de 38% a 40% da população mundial. A grande maioria é composta de camponeses pobres. No entanto, seu impacto no ambiente natural é essencialmente de caráter local e regional. O impacto da agricultura familiar na mudança climática é pouco significativo. A perda de biodiversidade é importante no caso dos pequenos camponeses (mas com possibilidade de ser controlada, mas sem medida comum com o estrago feito pelo agronegócio e a pecuária intensiva e confinada (impossível de ser controlada). As variadas poluições são mais orgânicas e raramente químicas ou físicas, em outras palavras, o impacto negativo dos camponeses pobres na natureza é muito menor que o dano causado pelas populações integradas na sociedade termo industrial. A questão da população está voltando à cena na Europa.E há quem proponha controlar o nascimento dos mais pobres. Respondo provocando: sim vamos controlar a população, mas ao invés de esterilizar as mulheres, vamos vasectomizar todos os machos que consomem mais de2,5 Tep/ano. São menos numerosos, logo mais baratos e de efeito mais rápido. O problema é quem será controlado.