Diante da calamidade econômica provocada pela pandemia do coronavirus, as reformas estruturais foram adiadas e o ajuste fiscal ficou suspenso enquanto o governo utiliza as suas ferramentas fiscais e monetárias para aumentar a liquidez e elevar os gastos públicos na proteção da população vulnerável, na contenção do desemprego em massa e na defesa da sobrevivência das empresas. Quando o sistema econômico entra em colapso, o Estado deve atuar para impedir o desastre econômico e social. Mas o Estado brasileiro está também colapsando e não tem fôlego para manutenção e, menos ainda, para ampliação dos gastos públicos. De acordo com estimativas otimistas, o governo encerra este ano com déficit primário de R$ 700 bilhões (cerca de 10% do PIB) acompanhado de uma queda de 8% no Produto Interno Bruto, elevando a dívida pública para mais de 90% do PIB.
Com este cenário, é tão simplista quanto arriscado pretender que o Estado amplie os gastos publicos com o objetivo de tirar a economia da recessão, financiando com mais endividamento que leva ao encurtamento de prazo dos títulos e pagamento de juros acima da Selic. Qualquer referência ao New Deal é completamente equivocada e ahistórica (pelas diferenças da realidade e da natureza das crises) e ignora que em 1933, a carga tributária norte-americana flutuava em torno de 6% do PIB[1] deixando o presidente Roosevelt com enorme folga tributária para aumento dos impostos que financiassem as obras públicas, todo o contrário dos governos brasileiros que acumulam enormes déficits apesar, de uma carga tributária em torno de 35% do PIB.
Para tirar o Brasil do abismo é necessário, antes de tudo, recuperar o cambaleante Estado nacional na sua capacidade fiscal que permita exercer sua função básica de prestação de serviços públicos e de estímulo à reanimação econômica. Como a mais elementar contabilidade para recuperar a capacidade de investimento, sem perder o controle da dívida pública, deve-se aumentar a receita ou reduzir as despesas. Os economistas se dividem na ênfase a uma ou alternativa. A elevação de impostos de forma seletiva e concentrados na renda mais alta de pessoa física tem um impacto pequeno na compressão da demanda agregada. Mesmo assim, alguns economistas preferem apostar na contração das despesas primárias, entendendo que a carga tributária no Brasil já é excessivamente elevada.
O tamanho da crise e, principalmente, o grande conflito distributivo que envolve as escolhas políticas exige, na verdade, uma combinação dos dois. O aumento de impostos a partir de 2021 é tecnicamente mais fácil e politicamente palatável, mas será aceitável apenas se fizer parte de numa negociação política que inclua uma repactuação das enormes distorsões das despesas públicas. Os economistas Fábio Pereira dos Santos e Ursula Dias Peres[2] estimam que seria posssível gerar uma receita adicional de R$ 140 bilhões com taxas adicionais e escalonadas sobre a renda de apenas 11% dos declarantes que detêm metade da renda total declarada. A criação de um imposto sobre distribuição de dividendos (atualmente isentos), enquanto se aguarda uma ampla reforma tributária, poderia adicionar algo em torno de R$ 60 bilhões. Toda esta receita nova deveria ser alocada em um Fundo especial de recuperação do Estado, desvinculado das despesas primárias[3], liberando para investimento em áreas estratégicas e/ou numa renda social básica. Por outro lado, sem mexer na carga tributária, o economista Armino Fraga propõe três medidas que permitiram reduzir as despesas primárias em condições de administrar o déficit primário de 8 a 9% do PIB: aprofundamento da reforma da previdência (incluisão dos Estados e eliminação de várias folgas), implementação de uma reforma administrativa para redução dos privilégios e altos salários na administração pública, e diminuição da renúncia fiscal[4].
A combinação de mais receita e menos despesas é fundamental para permitir a ampliação dos investimentos públicos que leve a uma reanimação da economia brasileira. Nada disso é alcançável sem um grande acordo político. Algo que, entretanto, parece inviável com um presidente despreparado, autoritário, anacrônico e delirante, e pouco provável com a carência dramática de lideranças políticas. O quadro é desolador. Mas talvez sejam situações limites como esta que despertem a nação para um entendimento e uma negociação política em torno do futuro do Brasil.
[1] Carga tributária dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX (exceto durante as guerras) segundo Gonçalves de Godoi, Carlos Eduardo; e de Mello, Elizabete Rosa. Os sistemas tributários norte-americano e brasileiro sob a ótica da justiça tributária e da tributação justa. RDIET-Revista de Direito Internacional Econômico e Tributário. Brasília, V.11, nº 2, p.172-195, Jul-Dez,2016
[2] Pereira dos Santos, Fábio; Dias Peres, Ursula. Por uma Contribuição Social Emergencial para enfrentar a Covid-19. Estado de São Paulo. 11 de abril de 2020
[3] Semelhante ao conceito de Keynes de criação de um “orçamento de capital” separado do “orçamento corrente” como comenta Bittes Terra, Fábio Henrique; e Ferrari Filho, Fernando. As políticas econômicas em Keynes: reflexões para a economia brasileira no período 1995-2011.JEL: B22: E12: E63
[4] Fraga, Arminio. Uma resposta à altura da crise. www1.folha.uol.com.br.31/05/2020
Sergio, evidente que a situação é diferente de 1929, mas as existem nos BANCOS Centrais de muitos países reservas suficientes para mobilizar um plano de ajudar multilateral aos países mais vulnerabilizados pela Pandemia, Pelo menos dois economista ganhadores do Premio Nobel já falaram sobre a importância de um enfrentamento internacional para as consequências da crise. Agora mesmo a Europa está discutindo um grande Plano de Reconstrução para os países membros da Comunidade, com divergência de alguns países quanto a forma. A Áustria, a Holanda e a Suécia querem mais precisão sobre prazos e critérios para investimentos dos recursos oriundos do novo Fundo . Agora, ficar pensando em uma reestruturação econômica, apenas com reforma fiscal interna. depois do tamanho do debacle econômico e social que está para vir será bastante duvidoso. A primeira coisa é preciso ter claro e dizer onde se tem folga para capitalizar o estado no Brasil : aumentar a taxação para salários mais altos(acho que ainda tem certa folga); fazer uma grande mudança nas reduções ou isenções tributárias das grandes empresas, criar uma CPMF mais robusta, cortar vários programas sociais;, cortar um percentual expressivo do custeio dos Poderes; Enfim, botar no papel com números dizendo quem vai pagar o reajuste. A proposta de reconstrução encampada por quatro ex presidentes da AL, mostrando de onde tirar os recursos, indica que a recomposição da economia não pode ficar apenas em ajuste fiscal, mas passa por um projeto estrutural de investimento. No mundo a discussão está começando. No início de Julho a Europa define o seu Plano; Os EUA-, apenas preocupado com a situação interna já fez o seu NEW DEAL – ; 1, 3 trilhões injetado direto na economia e no emprego . No incio TRUMP quis passar gato por lebre. Fez um programa de isenção fiscal para as grandes Corporações e foi bombardeado pela imprensa e pela oposição. Então, refez e construiu o seu New Deal.(eleição faz tudo) Vamos ver a proposta do posto Ipiranga do Brasil. As história,as vezes, se repete e exige considerar as experiências passadas, bem sucedidas,pode evitar tragédias que no Brasil tem tudo para combinar com a comédia
Arlindo
Seu comentário tem aspectos interessantes mas, em alguns momentos, parece não parece interpretar bem o meu artigo. Me permita, alguns comentários de volta:
1. Propostas de economistas ganhadores de prêmio Nobel, me desculpe, vale quase nada na hora das decisões políticas. Já disse em artigo anterior no JC que o Plano Marshall foi um programa de financiamento dos Estados Unidos, que enriqueceram com a guerra, aos destroçados países europeus. Foi crédito barato e não doação e era fundamental para recuperar o comércio mundial aos produtos norte-americanos. Há décadas que se fala (muitos prêmios Nobel) de um novo plano Marshall para os países pobres, coisa que nunca saiu do papel mesmo quando a economia dos membros da OCDE estava muitíssimo bem. Agora estão todos querendo salvar sua pele. Por isso, duvido que os prêmios Nobel consigam influenciar. O plano de reconstrução que a Europa está discutindo, como você mesmo diz, é para salvar Europa, o que, aliás, será muito bom para nós também.
2. Não sei se entendi bem seu comentário ao meu artigo quando diz que “ficar pensando em uma reestruturação econômica, apenas com reforma fiscal interna. depois do tamanho do debacle econômico e social que está para vir será bastante duvidoso”. Não pode ser uma critica ao meu artigo, e você termina defendendo o que, num enfoque diferente, está no meu artigo, exceto que me limito a aceitar imposto transitório sobre renda de pessoa física (CPMF é horrível) e redução de despesas correntes para dar musculatura ao Estado, indispensável para que possa realizar os investimentos que todos defendem. Citando dois artigos, meu artigo tenta apresentar exatamente o que você pede: “botar no papel com números dizendo quem vai pagar o reajuste”. Com a diferença que considero necessário juntar os dois, elevação de impostos com redução de despesas, tratados separadamente por cada um dos artigos citados.
3. Espero que você não tenha entendido que minha proposta fica limitada ao ajuste fiscal. O problema é que um “projeto estrutural de investimento” que você defende (e eu também, no mesmo artigo) exige uma definição da forma de financiamento que, do meu ponto de vista, não pode ser apenas vender mais títulos ou mesmo emitir reais. Não sou contra, portanto, a ações semelhantes ao do tão comentado New Deal realizadas na década de 30 dos Estados Unidos, mas acho muito perigosa a reedição de políticas para realidades tão diferentes. Meu artigo tinha exatamente a intenção de mostrar que o Estado que implementou o New Deal não existe no Brasil, de modo que defender investimento público em larga escala sem considerar as limitações fiscais é uma aventura perigosa. Alías de recente memória: o que fez Dilma, em proporções menores do que parece necessário agora, levou à grande recessão de 2016 e 2017. A história pode nos dar um aprendizado importante, Mas se não for compreendidas as diferenças das circunstâncias e, principalmente, dos recursos disponíveis e com potencial de alavancagem, o exemplo histórico pode ser catastrófico. Voilá. Abraços, Sérgio
Sergio, Não fui até o fim do artigo por ser muito especializado e me dá um nó na cabeça. A minha pergunta (provavelmente ingênua) que não quer calar, é se não é possível pensar na situação econômica atual com olhar “atravessado”, por assim dizer. Penso como exemplo a minha situação particular. Estou sem trabalho, com renda apenas de um dos responsáveis pela família. Por outro lado estou assumindo as tarefas domésticas (a pior parte!), os filhos sem gastos na vida social, a escola on-line baixou o preço. A minha economia doméstica quase se estabilizou. Ao mesmo tempo, com relação à cultura, que é minha área profissional, existe um orçamento anual preso em algum lugar, que poderia ser destinado para outros tipos de projetos em tempos de pandemia. Outra coisa, as empresas fechadas, embora com risco de falência, têm também alguma economia nos gastos com infra-estrutura, transporte, etc. Não é uma questão de realocar “os dinheiros”? Tenho certeza que é uma visão simplória e imediatista mas é até onde meu olhar alcança nesse assunto e aproveito para provocar mesmo!