As ruas já não são território exclusivo do bolsonarismo.
No último domingo de maio, torcedores de diferentes clubes de futebol foram às ruas em várias cidades do País. O maior ato, na Av. Paulista, em São Paulo, foi organizado por corintianos, mas também contou com palmeirenses, santistas e são-paulinos. Estavam ali para defender a democracia e combater o fascismo.
Abriu-se uma nova fase na vida política nacional. Ampliaram-se a resistência ao bolsonarismo e o isolamento do presidente, que se vê cada vez mais enfurnado em Brasília.
Não foram manifestações de massa. Nem podiam, dado o isolamento social. A batalha é desigual, porque os bolsonaristas, na maioria negacionistas, não conhecem barreiras sanitárias e contam com o apoio simbólico do governo, recursos logísticos e mensagens do gabinete do ódio. Houve conflitos entre os grupos, a polícia interveio, com a habitual falta de sensibilidade, para dizer o mínimo.
Paralelamente, passaram a ecoar manifestos endossados por centenas de milhares de cidadãos, intelectuais, artistas, ativistas. Diferentes setores da sociedade civil somam hoje sua voz à dos ministros do STF, os grandes jornais estampam diariamente sua indignação, surgem movimentos inéditos de aproximação entre partidos até há pouco separados por divergências complicadas. Tudo mostra que o diálogo e a reunião dos democratas podem ter encontrado um desaguadouro promissor.
O quadro, porém, é impreciso e delicado. Não há nele uma via de mão única. O bolsonarismo continua vivo. Bem ou mal, ocupa o poder federal, onde acamparam segmentos das Forças Armadas que lhe têm fornecido respaldo e batem continência para o capitão. O vice-presidente da República, general Mourão, se posiciona sempre mais em consonância com uma visão de que o País está às portas da baderna, referendando a narrativa governamental. O governo parece unido e tem buscado erguer no Congresso Nacional uma base de sustentação, preocupado com sua sobrevivência. O apetite guloso do Centrão, com seus próceres desprovidos de maior dignidade ou respeito constitucional, alimenta o governo mas também o impede de funcionar.
Há muito combustível para a expansão do protesto cívico e o reagrupamento dos democratas.
Começou a se romper o pessimismo paralisante em que a sociedade civil se encontrava. O cerco ao autoritarismo avança. Não é um trabalho simples. Ele requer combatividade e paciência, metas claras e apoios, ligação entre a defesa da vida, a recuperação da economia e o reforço da democracia.
O isolamento social imposto pelo combate à epidemia é um complicador, que refreia parte do entusiasmo. Mas é preciso reconhecer que se tornou novamente possível olhar a realidade com otimismo. E é nesse momento que vale muito o esforço para fazer vibrar as cordas do realismo político.
Enigmas
O quadro que agora está sendo mais bem delineado contém enigmas que precisam ser decifrados.
O primeiro está associado à potência das ruas e à sua dimensão organizacional. Por ora, são torcidas organizadas de futebol, um sucedâneo imperfeito de partidos ou frentes políticas. Não é razoável imaginar que associações cortadas pelo espontaneísmo e impregnadas de voluntarismo consigam imprimir direcionamento à movimentação popular. Com os cidadãos majoritariamente represados, não se forma uma “barreira” de massa que engolfe democraticamente as torcidas. O risco de confronto e violência é real.
O segundo enigma são os militares. Até onde vai o apoio delas ao governo e o que farão tendo em vista o agravamento da crise política? O ex-ministro Raul Jungman tem falado que as Forças Armadas não sairão do trilho constitucional, e não há porque questionar sua sabedoria e experiência. Mas é preciso manter os olhos bem abertos. Os militares estão endossando atos governamentais que repercutem negativamente, o que poderá levar tanto a que abandonem o barco, envergonhados, quanto a que decidam tomar conta dele diretamente. Está para ser mais bem compreendida a relação entre os militares que estão no governo (ministros e assessores) e as Forças Armadas propriamente ditas.
O terceiro enigma tem a ver com a saúde pública. É o mais dramático e devastador. Não há como saber nem até onde a epidemia irá, nem qual será a capacidade de absorção do sistema de saúde. As mortes se acumulam assustadoramente. Vidas desperdiçadas. Ainda há como reagir?
Outro enigma: com a epidemia avançando, seu impacto no terreno da ação democrática é enorme. A sociedade civil está com dificuldade de se projetar politicamente, o que em boa medida, representa uma sobrevida para o autoritarismo. Operações virtuais e atuação nas redes poderão compensar a dificuldade de ocupação das ruas? O que pode ser feito concretamente nesse território ainda tão mal aproveitado pelas forças democráticas
O quinto enigma: como se dará a recuperação da economia? Dando como óbvio que a recessão será brava e de médio ou longo prazo, o que fazer para minimizar o prejuízo e proteger os mais fracos? Como evitar que a desigualdade se aprofunde?
São enigmas para os quais não há respostas cabais. A população, com mais consciência ou menos, se angustia diante deles e espera soluções, propostas, sinalizações. Precisamos superar o silêncio propositivo em que nos encontramos.
O touro ferido
Uma metáfora pode me ajudar. É como se um toureiro tivesse encurralado e ferido o touro, mas estivesse sem condições ótimas para lhe espetar a lança derradeira. Sua vitória depende de uma combinação complexa de pertinácia, resistência, paciência e apoio dos que torcem por ele e estão fora da arena. Tais torcedores podem ser mais ativos ou menos. Podem ajudá-lo de modo a mantê-lo atento e forte, ou podem desequilibrá-lo emocionalmente por meio de apupos impacientes. A vibração da arena precisa ser uma só, a expressar uma sintonia entre toureiro e espectadores.
A metáfora aqui empregada precisa ser bem compreendida. “Espectador”, no caso, não é o cidadão passivo, mas o cidadão que entende o desenrolar da dança e se faz, ele próprio, carne e alma do toureiro. Seu ativismo é estratégico, tem alto poder de decisão.
Não há como ser otimista no quadro atual sem uma dose adicional de realismo bem compreendido. Se “somos 70%”, se de fato “Estamos juntos” e nos dispomos a dar um “Basta!” ao descalabro que nos atinge, precisamos agir como força unitária, que reúna representantes das várias correntes de que somos compostos, que promova a suspensão de vetos e cálculos eleitorais de curto prazo, que dinamize a sociedade e feche o cerco ao autoritarismo. Não é um trabalho simples. Ele requer combatividade e paciência, metas claras e apoios.
Trata-se de disseminar ideais, valores, disposição, vontade. Formar uma opinião democrática no âmbito da opinião pública. Defender a vida e defender a Constituição, com seus guardiões, o STF, e seus agentes no sistema de representação. Disputar as redes. A imprensa está cumprindo seu papel e a cada dia se mostra mais combativa e criteriosa. As instituições funcionam e vêm sendo dirigidas, em sua maioria, por pessoas que já decifraram onde mora o perigo. O Poder Judiciário está ativo. Tudo isso merece apoio.
Justamente por isso, dois passos são fundamentais. Um é dar sequência e fortalecer a opinião pública democrática, o que vem sendo feito por cidadãos e ativistas, pela imprensa, pelas redes, pelos manifestos. Outro é ampliar a visibilidade da articulação democrática. Instituições, dirigentes, parlamentares, lideranças precisam ser apoiados, do jeito que for possível. O segredo é ligar uma ponta na outra, um passo no outro, dando ao que ocorre no plano da política institucional o respaldo de que ela necessita para vencer.
A política precisa de política.
O importante é não ceder à tentação maximalista de achar que a ruptura está à vista, que os laços entre Bolsonaro e a elite econômica e social são indestrutíveis e que a direita está amarrada ao governo como projeto existencial. É erro político grosseiro achar que a formação de uma amplíssima frente democrática é improdutiva porque a centro-direita em algum momento trairá a democracia ou porque os interesses da esquerda e dos trabalhadores não estão sendo devidamente considerados.
A luta pela democracia deve ser compreendida, por todos, como um parâmetro que ultrapassa os distintos particularismos.
Concordo com suas afirmações e com suas dúvidas, inclusive a advertência contra juízos precipitados e definitivos. Exceto talvez a frase que se refere ao Vice-Presidente, sobre o qual a minha percepção é mais “benigna”. Ainda assim continuo com dúvidas sobre se hoje em dia muito eficaz politicamente defender a democracia em abstrato. Democracia é uma abstração sem conteúdo concreto para boa parte da população, para a qual não há nem liberdade, nem igualdade, nem justiça. Como disse Roberto DaMatta (Estadão, 10/06/2020) “Essa democracia, que sempre e em todo lugar produz tantas crises, deve ser a todo custo defendida. Justamente por isso, não pode deixar de ser pensada.” Estava em curso uma discussão em várias frentes, inclusive na análise da pobreza e da distribuição de renda, com intenção/objetivo de – digamos – “tornar a democracia mais democrática”, e aí as ameaças à nossa nem tão frágil democracia ficaram tão evidentes com a Presidência Bolsonaro e o bolsonarismo que tivemos que deixar de lado as críticas (construtivas), e até críticas mais que merecidas ao Judiciário, ao Congresso e ao sistema de representação política tiveram que sair do foco, para a união de todos os democratas contra a ameaça ditatorial. Pois o bolsonarismo, com essa defesa do fechamento do STF e do Congresso, de fato mata qualquer crítica construtiva.