Marco Aurélio Nogueira

As ruas já não são território exclusivo do bolsonarismo.

No último domingo de maio, torcedores de diferentes clubes de futebol foram às ruas em várias cidades do País.  O maior ato, na Av. Paulista, em São Paulo, foi organizado por corintianos, mas também contou com palmeirenses, santistas e são-paulinos. Estavam ali para defender a democracia e combater o fascismo.

Abriu-se uma nova fase na vida política nacional. Ampliaram-se a resistência ao bolsonarismo e o isolamento do presidente, que se vê cada vez mais enfurnado em Brasília.

Não foram manifestações de massa. Nem podiam, dado o isolamento social. A batalha é desigual, porque os bolsonaristas, na maioria negacionistas, não conhecem barreiras sanitárias e contam com o apoio simbólico do governo, recursos logísticos e mensagens do gabinete do ódio. Houve conflitos entre os grupos, a polícia interveio, com a habitual falta de sensibilidade, para dizer o mínimo.

Paralelamente, passaram a ecoar manifestos endossados por centenas de milhares de cidadãos, intelectuais, artistas, ativistas. Diferentes setores da sociedade civil somam hoje sua voz à dos ministros do STF, os grandes jornais estampam diariamente sua indignação, surgem movimentos inéditos de aproximação entre partidos até há pouco separados por divergências complicadas. Tudo mostra que o diálogo e a reunião dos democratas podem ter encontrado um desaguadouro promissor.

O quadro, porém, é impreciso e delicado. Não há nele uma via de mão única. O bolsonarismo continua vivo. Bem ou mal, ocupa o poder federal, onde acamparam segmentos das Forças Armadas que lhe têm fornecido respaldo e batem continência para o capitão. O vice-presidente da República, general Mourão, se posiciona sempre mais em consonância com uma visão de que o País está às portas da baderna, referendando a narrativa governamental. O governo parece unido e tem buscado erguer no Congresso Nacional uma base de sustentação, preocupado com sua sobrevivência. O apetite guloso do Centrão, com seus próceres desprovidos de maior dignidade ou respeito constitucional, alimenta o governo mas também o impede de funcionar.

Há muito combustível para a expansão do protesto cívico e o reagrupamento dos democratas.

Começou a se romper o pessimismo paralisante em que a sociedade civil se encontrava. O cerco ao autoritarismo avança. Não é um trabalho simples. Ele requer combatividade e paciência, metas claras e apoios, ligação entre a defesa da vida, a recuperação da economia e o reforço da democracia.

O isolamento social imposto pelo combate à epidemia é um complicador, que refreia parte do entusiasmo. Mas é preciso reconhecer que se tornou novamente possível olhar a realidade com otimismo. E é nesse momento que vale muito o esforço para fazer vibrar as cordas do realismo político.

Enigmas

O quadro que agora está sendo mais bem delineado contém enigmas que precisam ser decifrados.

O primeiro está associado à potência das ruas e à sua dimensão organizacional.  Por ora, são torcidas organizadas de futebol, um sucedâneo imperfeito de partidos ou frentes políticas. Não é razoável imaginar que associações cortadas pelo espontaneísmo e impregnadas de voluntarismo consigam imprimir direcionamento à movimentação popular. Com os cidadãos majoritariamente represados, não se forma uma “barreira” de massa que engolfe democraticamente as torcidas. O risco de confronto e violência é real.

O segundo enigma são os militares. Até onde vai o apoio delas ao governo e o que farão tendo em vista o agravamento da crise política? O ex-ministro Raul Jungman tem falado que as Forças Armadas não sairão do trilho constitucional, e não há porque questionar sua sabedoria e experiência. Mas é preciso manter os olhos bem abertos. Os militares estão endossando atos governamentais que repercutem negativamente, o que poderá levar tanto a que abandonem o barco, envergonhados, quanto a que decidam tomar conta dele diretamente. Está para ser mais bem compreendida a relação entre os militares que estão no governo (ministros e assessores) e as Forças Armadas propriamente ditas.

O terceiro enigma tem a ver com a saúde pública. É o mais dramático e devastador. Não há como saber nem até onde a epidemia irá, nem qual será a capacidade de absorção do sistema de saúde. As mortes se acumulam assustadoramente. Vidas desperdiçadas. Ainda há como reagir?

Outro enigma: com a epidemia avançando, seu impacto no terreno da ação democrática é enorme. A sociedade civil está com dificuldade de se projetar politicamente, o que em boa medida, representa uma sobrevida para o autoritarismo. Operações virtuais e atuação nas redes poderão compensar a dificuldade de ocupação das ruas? O que pode ser feito concretamente nesse território ainda tão mal aproveitado pelas forças democráticas

O quinto enigma: como se dará a recuperação da economia? Dando como óbvio que a recessão será brava e de médio ou longo prazo, o que fazer para minimizar o prejuízo e proteger os mais fracos? Como evitar que a desigualdade se aprofunde?

São enigmas para os quais não há respostas cabais. A população, com mais consciência ou menos, se angustia diante deles e espera soluções, propostas, sinalizações. Precisamos superar o silêncio propositivo em que nos encontramos.

O touro ferido

Uma metáfora pode me ajudar. É como se um toureiro tivesse encurralado e ferido o touro, mas estivesse sem condições ótimas para lhe espetar a lança derradeira. Sua vitória depende de uma combinação complexa de pertinácia, resistência, paciência e apoio dos que torcem por ele e estão fora da arena. Tais torcedores podem ser mais ativos ou menos. Podem ajudá-lo de modo a mantê-lo atento e forte, ou podem desequilibrá-lo emocionalmente por meio de apupos impacientes. A vibração da arena precisa ser uma só, a expressar uma sintonia entre toureiro e espectadores.

A metáfora aqui empregada precisa ser bem compreendida. “Espectador”, no caso, não é o cidadão passivo, mas o cidadão que entende o desenrolar da dança e se faz, ele próprio, carne e alma do toureiro. Seu ativismo é estratégico, tem alto poder de decisão.

Não há como ser otimista no quadro atual sem uma dose adicional de realismo bem compreendido. Se “somos 70%”, se de fato “Estamos juntos” e nos dispomos a dar um “Basta!” ao descalabro que nos atinge, precisamos agir como força unitária, que reúna representantes das várias correntes de que somos compostos, que promova a suspensão de vetos e cálculos eleitorais de curto prazo, que dinamize a sociedade e feche o cerco ao autoritarismo. Não é um trabalho simples. Ele requer combatividade e paciência, metas claras e apoios.

Trata-se de disseminar ideais, valores, disposição, vontade. Formar uma opinião democrática no âmbito da opinião pública. Defender a vida e defender a Constituição, com seus guardiões, o STF, e seus agentes no sistema de representação. Disputar as redes. A imprensa está cumprindo seu papel e a cada dia se mostra mais combativa e criteriosa. As instituições funcionam e vêm sendo dirigidas, em sua maioria, por pessoas que já decifraram onde mora o perigo. O Poder Judiciário está ativo. Tudo isso merece apoio.

Justamente por isso, dois passos são fundamentais. Um é dar sequência e fortalecer a opinião pública democrática, o que vem sendo feito por cidadãos e ativistas, pela imprensa, pelas redes, pelos manifestos. Outro é ampliar a visibilidade da articulação democrática. Instituições, dirigentes, parlamentares, lideranças precisam ser apoiados, do jeito que for possível. O segredo é ligar uma ponta na outra, um passo no outro, dando ao que ocorre no plano da política institucional o respaldo de que ela necessita para vencer.

A política precisa de política.

O importante é não ceder à tentação maximalista de achar que a ruptura está à vista, que os laços entre Bolsonaro e a elite econômica e social são indestrutíveis e que a direita está amarrada ao governo como projeto existencial. É erro político grosseiro achar que a formação de uma amplíssima frente democrática é improdutiva porque a centro-direita em algum momento trairá a democracia ou porque os interesses da esquerda e dos trabalhadores não estão sendo devidamente considerados.

A luta pela democracia deve ser compreendida, por todos, como um parâmetro que ultrapassa os distintos particularismos.