Enquanto se especula sobre o futuro do “Superministro” da Economia, caminhou a tão anunciada privatização. Semana passada foi liquidada pelo governo Bolsonaro, finalmente, uma empresa estatal que há 20 anos não fazia nada exceto pagar funcionários. E isso que o andamento desse processo já se havia iniciado há três anos, no governo Temer. A história dessa CODOMAR (Cia. Docas Maranhão) é inacreditável, é emblemática dos absurdos de empresas estatais no Brasil. É também uma amostra de quanto é difícil privatizar qualquer empresa ou função nesta “república de funcionários”. Com frequência, o custo de fechar (com passivo trabalhista, dívidas, indenizações) é tão alto que o governo prefere deixar funcionando porque o custo é menor (no curto prazo). Esse é o motivo pelo qual ainda existe uma estatal federal para fabricar chips de identificação e localização, como a Ceitec, no Rio Grande do Sul. Que, pelo visto, conseguiu afugentar o Secretário de Desestatização.

Em meados de agosto de 2019, Bolsonaro mostrou uma lista de 17 empresas que seriam privatizadas, incluindo Eletrobrás, Correios, Casa da Moeda, sem qualquer plano concreto. Além disso, o governo classificou de privatização a venda, pela Petrobrás, de algumas de suas subsidiárias, e a venda das ações que o governo detinha em alguns fundos e empresas. Com as empresas da lista até agora não se avançou, exceto serem anunciadas de novo. Mas o governo Bolsonaro criou sua primeira estatal federal, NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea. Seria para controle do espaço aéreo. E a FAB? Vai ver não dá para transferir para a FAB empregados excedentes da INFRAERO.

Novidade neste governo é que ao menos foi confirmado que há centenas de empresas estatais sem qualquer explicação dos motivos para serem estatais. O Secretário Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados que deixou o governo no mês passado, Salim Mattar (um dos que “debandaram” da equipe de Guedes), incluiu no seu legado o Decreto 10.263 que obriga os ministérios a apresentar justificativa da existência de suas empresas dependentes a cada dois anos. Como se não existisse evidência de que uma forte resistência à privatização ou liquidação vem exatamente dos empregados dessas empresas estatais. Cada Ministério justificará suas estatais ad eternum.

O próprio Salim Mattar, ao escrever “Por que saí do governo” (braziljournal.com 12.08.2020) resumiu sua experiência de 19 meses como servidor público: “Aprendi que a lógica de governo não é a lógica da iniciativa privada. … São mundos absolutamente distintos habitados por faunas, regras, leis e comportamentos próprios.” E era p’ra ser igual? É até engraçado ler, pela surpresa de Mattar, e pela ideia ingênua de liberalismo: redução do tamanho do estado e liberdade como valor maior. Só isso não dá para governar. Parece que se deu conta de que, para aplicar a doutrina liberal, para concretamente tirar o Estado de atividades em que ele não deve estar, faltou a noção de “efeitos colaterais”, uma noção que necessariamente deve ter o Estado para arbitrar pressões e interesses, mas que não necessariamente preocupa cada empresa ou indivíduo.

E o que aconteceu com a promessa liberal das eleições de 2018? O ex Secretário de Desestatização parece ser um dos que acreditaram nela. A falta de transparência no emaranhado das intervenções do Estado na economia brasileira continua, não há racionalidade e não se beneficia o país e sua população. Sua “racionalidade” é a do patrimonialismo, ausentes limites claros entre o público e o privado, e do clientelismo, a acomodação dos setores que conseguem fazer mais pressão para obter do Estado concessões e vantagens. Com reforço de pressões novas, agora as das igrejas, sobretudo as pentecostais com seu poderio econômico.

Continuamos a ser um dos países mais protecionistas do mundo. Ninguém se espantou com a notícia de que o país que é talvez maior sucesso na produção agrícola, candidato a celeiro do mundo, tem imposto de importação para arroz? Pois o governo anunciou que a alíquota de um imposto que nem deveria existir será zero até dezembro, na suposição de que isso pode conter o aumento do preço do arroz. E como de costume neste governo, tomou a medida em “modo bagunça”, pois não houve avaliação de impacto e os parceiros do MERCOSUL sequer foram consultados sobre essa mudança na tarifa externa comum, embora quase 100% das importações brasileiras de arroz venham de Argentina, Uruguai e Paraguai.

É tanto subsídio específico, tanta isenção tributária direcionada a grupos de pressão que tiveram sucesso, é tanta desigualdade de incentivos (inclusive salarial e de aposentadorias) introduzida por intervenção do Estado, é tanto desperdício em estatais em situação pré-falimentar incorrigível – enfim, é tanta intervenção desordenada do Estado que a crítica liberal do excesso de intervenção ganhou tração. A livre concorrência tem aqui tanta interferência que se duvida que o Brasil seja economia de mercado, se comparado com o funcionamento do mercado na China.

O Brasil não avançará sem um “choque de liberalismo”. A mesma coisa que há alguns anos se chamava “choque de capitalismo”. Está claro que o “liberalismo” confusamente prometido na campanha de 2018 ficou na promessa. Mas ao menos você não arrisca apanhar ao pedir mais concorrência. Ou será que não? É até engraçado lembrar agora de Arnaldo Jabor, às vésperas da eleição de 2014: “Vou dizer, vou dizer de novo, ainda vou apenhar por isso: o Brasil precisa de um choque de capitalismo, sim!” (Arnaldo Jabor no Roda Viva, 15/09/2014)

Muitos empresários e alguns economistas respeitáveis votaram em Bolsonaro em 2018 pela promessa de medidas de liberalismo econômico, quando se apresentou Paulo Guedes como fiador de tal promessa. Não foi exatamente prometido, mas mentirosamente insinuado, pois o candidato a Presidente apenas disse “não entendo de economia”, “não entendo de agricultura”, “não entendo de um montão de coisa”. Ausência de conhecimento e de propostas concretas, ignorância e despreparo, foram interpretados como humildade, acreditaram que ele iria “perguntar ao posto Ipiranga”, consultar os especialistas de área. E Paulo Guedes achou que podia adestrar, ensinar esse capitão que não sabia nada. Esqueceu de examinar o currículo do candidato a Presidente que, segundo hagiografia escrita por seu filho Flávio, tinha quando cadete – já lá se foram 45 anos – o apelido de “Cavalão”, cadete 531 sempre elogiado por desempenho atlético.

Passados dois anos da eleição, ouso afirmar que empresários e algumas pessoas sérias de convicções liberais “caíram na conversa como um patinho”, acreditaram na própria esperança (traduzindo poeticamente “wishful thinking”). Do “superministro” liberal não sobrou nada, atropelado por um Presidente que se apegou ao poder, e só tem como objetivo a reeleição. Liberalismo neste governo nunca chegou a existir. Ouçam Elena Landau, Presidente do movimento liberal “Livres”, que não me deixa mentir.

Paulo Guedes tem que ser criticado por não fazer o prometido, seja por incompetência, seja por temperamento errático, seja por personalidade autoritária que não sabe negociar, ou basicamente porque é boicotado pelo Presidente dele e pelo governo em seu conjunto, que de liberal não tem nada. Não são as linhas gerais de sua proposta que condenam o Ministro da Economia, mas o fato de que as propostas chegaram atrasadas, foram repetidamente anunciadas em esboço, sem projeto concreto e detalhado colocado para discussão com o Congresso, ou então foram entregues em projeto com distorções introduzidas pelo Presidente (como foi o caso da reforma da Previdência). Merece ser acusado de fazer “política de gogó”, com seus balões de ensaio de propostas mal costuradas. No caso das privatizações, houve mais anúncio que realidade. Quanto à liberalização comercial, foi comemorada a assinatura do acordo Europa-Mercosul, que iria nessa direção. Mas o mesmo governo que teve competência negociadora com Marcos Troyjo e a Ministra Tereza Cristina, sinalizou o enfraquecimento da fiscalização e desmoralizou os órgãos pré-existentes de execução da política ambiental, com resultados tão catastróficos que tornaram inviável a necessária ratificação pelos países europeus.

“Neoliberal” até hoje é somente um termo que o PT adotou para atacar o Presidente Fernando Henrique Cardoso. Agora, um Ministro da Economia desesperado com a receita em queda enquanto o gasto público aumenta, ou um liberal fracassado, não se torna por isso um “neoliberal radical” ou um “ultraliberal”. Responsabilidade fiscal não é necessariamente liberal. Não está claro quais seriam essas políticas econômicas “ultra” no atual contexto brasileiro.

O que está muito difundido é uma visão simplista de liberalismo, como se fosse defesa do “estado mínimo” para não onerar contribuintes, quando na doutrina liberal a questão não é simplesmente de tamanho do Estado, e sim, Estado para quais funções. Ou a ideia de que liberalismo é defesa da liberdade, assim sem qualificação, liberdade total e absoluta, o que de novo não tem nada a ver com a doutrina liberal, e sim, com egoísmo e anarquia.

O liberalismo do Presidente Bolsonaro e seu governo é liberalismo de fancaria. O rótulo mais benigno que podemos dar à tese de que existe, por exemplo, liberdade antivacina, ou liberdade de desrespeitar disposições municipais para reduzir a difusão do coronavirus, é “liberalismo de egoista”. É o “liberalismo do Cavalão” que não aprendeu nada, tão simplório quanto o “marxismo de galinheiro” que de capitalismo só repete que a função do capital é explorar o trabalho e tomar os recursos do Brasil. Pois não acabamos de ver o pessoal em campanha contra o marco legal do saneamento básico dizer “não podemos entregar nossa água aos capitalistas”? Pois também temos “liberalismo de fancaria”, do sujeito tosco que nunca se deteve para pensar o que significa “ser livre”.

O que o liberalismo sempre disse é que o Estado deve intervir para corrigir “externalidades negativas” da economia de mercado – no nosso jargão de economista. Um “liberal clássico” (no sentido da doutrina) defende a economia de mercado e considera que o governo deve se concentrar em suas funções essenciais de segurança interna e externa, fornecimento de bens públicos que o mercado não consiga oferecer, e em tentar corrigir os piores efeitos colaterais (as tais “externalidades negativas” do jargão) de atividades privadas e do comportamento individual.

Sim, o liberalismo defende a liberdade individual contra a microadministração de governos autoritários sobre o comportamento pessoal. Mas isso nada tem a ver com liberdade do indivíduo de dizer ou fazer o que lhe dá na telha. Há que considerar os “efeitos colaterais”, já que o ser humano não vive sozinho e isolado.

Se continuamos com o exemplo de vacinas e ações de combate ao coronavirus, é preciso ter em conta que saúde não é apenas bem individual, é bem público. E um indivíduo não pode alegar sua liberdade individual quando seu comportamento individual causa danos à saúde de todos. Samuel Brittan, um grande economista liberal, já advertia contra o primarismo de “um falso raciocínio que identifica individualismo com interesse próprio e interesse próprio com egoísmo”. Como não posso acreditar que o Presidente da República não consegue sequer entender que, quando as pessoas se recusam a tomar vacina, implicitamente admitem o pior efeito colateral, que é uma população inteira infectada, só posso entender sua proclamação libertária como demagogia para alimentar as fantasias de liberdade sem responsabilidade de uma multidão de egoístas. Nada a ver com liberalismo. Da doutrina liberal, ao contrário, deriva o direito do Estado de punir um indivíduo antissocial: o liberalismo sempre disse que é obrigação do Estado proteger a sociedade contra os piores efeitos colaterais do comportamento individual.

Claro que podem existir debates sobre o que sejam “piores efeitos colaterais” em cada circunstância. No caso de vacinas já existe um consenso mundialmente estabelecido. Mas em cada lugar e em cada circunstância histórica, o que sejam “efeitos colaterais” aceitáveis ou inaceitáveis é decidido no jogo democrático. Inadmissíveis são as imposições do governante fora desse jogo democrático, em nome de um liberalismo de fancaria.