Rigoletto – Verdi.

 

Num baile orgíaco no palácio do duque de Mântua, Rigoletto, o bobo da corte, ousa debochar do conde Monterone, cuja filha foi seduzida pelo duque. Revoltado, Monterone lança uma maldição sobre o duque e seu bufão, que se deixa impressionar com as palavras do nobre indignado. Este é o mote de Rigoletto, uma das óperas mais impactantes e populares do italiano Giuseppe Verdi (1813-1901), baseada numa peça polêmica do dramaturgo Victor Hugo (1802-1885). Em Le roi s’amuse (O rei se diverte, 1832) o francês queria denunciar a corrupção na corte de Luís XII (1462-1515) por meio da boca do bufão Triboulet.

Rigoletto estreou no tradicional teatro La Fenice, em Veneza, em 1851. Foi a obra que deu início à reputação internacional de Verdi: em dez anos, foi montada em cerca de 250 teatros de ópera de todo o mundo. “A mulher é volúvel / como pluma ao vento / muda de palavra e de pensamento.” Estes versos nada lisonjeiros sobre a natureza feminina são o refrão de uma da célebre ária para tenor “La donna è mobile”, que certamente contribuiu para o sucesso da ópera, que também se escora num enredo audacioso, aceito pelos censores venezianos somente após duas revisões – a censura impediu que se focasse a corrupção originalmente na figura de um rei, rebaixando-a até um duque. Conta-se, por sinal, que Verdi estava tão certo de ter composto um sucesso com “La donna è mobile” que instruiu os músicos da orquestra a não assobiar ou cantar a melodia fora dos ensaios no teatro antes da estreia.

Rigoletto integra a trilogia romântica de Verdi, ao lado de La Traviata e Il Trovatore, óperas magníficas em que personagens complexos buscam explorar aspectos da condição humana. Os temas que Rigoletto aborda, porém, continuam atuais: sedução do poder, corrupção, assédio sexual e estupro. O lacaio de língua afiada e sem escrúpulos que dá nome à ópera representa um papel riquíssimo. Embora seja cúmplice das seduções do duque e zombe de pais e maridos ultrajados pelo insaciável apetite sexual do nobre, ele teme se tornar uma vítima do próprio patrão. Rigoletto tem uma filha, Gilda, que protege obsessivamente dos olhos voluptuosos do duque e de seus cortesões. Uma atitude que terá consequências trágicas.

O tema era encarado com naturalidade à época, mas hoje é foco de calorosa discussão. Rigoletto traz uma deformidade física e, por isso, só serve como motivo de chacota, como um bobo que, se saísse desse cargo humilhante, não teria trabalho nem inclusão. É uma figura enigmática que incentiva a corrupção, o assédio e que pratica cárcere privado com a própria filha. Como descreve Victor Hugo, com uma economia que não lhe era característica: “Triboulet [nome do bufão na peça original] tem dois pupilos, o rei, a quem ele instrui no vício, e sua filha, a quem ele erige em virtude. Um irá destruir o outro”.

Verdi transporta com absoluta maestria para a partitura as emoções envolvidas. Trabalha com contrastes e sutilezas. Momentos extremamente dramáticos contrastam com outros leves, jocosos. Às vezes, a doçura de Gilda é representada pelas flautas, pelas cordas na região aguda. É uma obra dramática, mas flui com leveza. É importante considerar que o tema principal é, na verdade, o amor paterno, imenso, que norteia todos os atos desse personagem perverso. O relacionamento de pai com filha é, desde sempre, algo muito peculiar. Independentemente do caráter de Rigoletto, trata-se de um ser humano que ama incondicionalmente a filha.

A história se passa no ducado de Mântua e proximidades, na região italiana da Lombardia do século XVI. As cortinas se abrem em pleno baile no palácio do duque, que pensa numa jovem que pretende conquistar. Mas decide primeiro conquistar a condessa de Ceprano, que lá está. O bobo da corte, Rigoletto, ridiculariza o marido dela. Mas ao zombar do conde de Monterone, cuja filha foi seduzida pelo duque, é por ele amaldiçoado, o que o choca profundamente. Na cena seguinte, Rigoletto é interpelado por Sparafucile, que oferece seus serviços de matador profissional, mas o despacha e abraça sua filha, Gilda. Reitera o amor por ela e, dizendo-lhe que não receba ninguém na casa, parte. Pensando ser Gilda uma amante de Rigoletto, o duque entra e, passando-se por um estudante, declara seu amor; ela se comove e canta a ária “Caro nome”:

 

O duque, que receia ser descoberto, pensa em fugir. No escuro, os cortesãos se encontram com o objetivo de raptar a “amante” de Rigoletto. Rigoletto chega e pensa que quem está sendo levada é a condessa de Ceprano, com os olhos vendados. Ele participa da ação ajudando a segurar a escada. Quando partem, Rigoletto tira a venda dos olhos. É tarde. Lembra angustiado da maldição de Monterone.

O ato inicia com o duque desolado por não ter notícia do seu anjo. Em seguida, descobre que Gilda foi raptada. Entra em desespero e deseja encontrá-la. Os cortesãos, com sabor de vitória, contam como prenderam a “amante” do corcunda. Rigoletto aparece demonstrando indiferença, mas no seu íntimo reina um enorme desespero para encontrar sua filha. Sem querer, com a chegada de um pajem, ele descobre que o duque está com Gilda. Totalmente fora de si, Rigoletto tenta forçar seu caminho até o duque. Ele é afastado e, nesse momento, roga para que ela seja liberta. Gilda, em lágrimas, é trazida até o pai. Ela confessa sua ligação com o duque e que lhe havia tirado a honra. Rigoletto jura que haverá uma vingança. Não existem outros pensamentos para ele, mesmo com as súplicas de Gilda, pois seu único motivo a partir de agora é vingar-se.

O terceiro e último ato inicia com Gilda declarando que ainda ama o duque, mas Rigoletto quer que ela saiba que ele não vale nada. Espionando a casa de Sparafucile, o matador de aluguel, ela reconhece o duque novamente disfarçado e o ouve pedir vinho, cantando cinicamente a canção que expressa seu desprezo pelas mulheres (“La donna è mobile”). Enquanto o duque seduz Madalena, irmã de Sparafucile, Rigoletto o denuncia a Sparafucile como aquele que deve morrer:

Paga então ao assassino, dizendo que voltará para recolher o corpo. Percebendo que seu novo amante vai morrer, Madalena pede por sua vida. Sparafucile concorda em matar o próximo que chegar. Ouvindo esses planos, Gilda resolve sacrificar-se pelo amado. Ela vai ao encontro de Sparafucile, que se esconde atrás de uma porta aguardando com uma faca o momento para executar o assassinato. A porta se abre. Tudo está escuro. A vítima está escondida em um saco. Muito feliz por estar concretizando sua vingança, Rigoletto está ansioso por jogar o saco no rio, quando, para seu horror, ouve a voz do duque ao longe cantarolando. Rigoletto abre o saco e vê sua filha agonizando. Ela lhe implora o perdão e morre. Rigoletto está transtornado, infeliz, a maldição de Monterone foi cumprida:

 

Musicalmente, Rigoletto representava nítido rompimento com o passado: Verdi descartou árias de introdução e ensembles nos finais, intensificando o ritmo dramático com o recitativo cantado do protagonista – um tipo de recitativo melódico. Caso raro em sua produção, trata-se também de uma ópera dominada pela voz de um barítono. A inovação mais surpreendente, porém, está no papel do tenor. Na maior parte do tempo, a linguagem musical do duque namorador está próxima à da ópera cômica: o duque cantor é, em outras palavras, encantador e persuasivo, e combina com quase todas as melodias famosas da ópera. Mas o duque do enredo é sempre negativo. Toda a fachada de canto leve e lírico é posta a serviço de um libertino, um homem cujo fascínio exterior combina errada e grotescamente com um cinismo interior.

Há mais um importante aspecto na inovação de Rigoletto no que tange às personas vocais – como destaca a musicóloga Carolyn Abbate, de Harvard. Os personagens anteriores de Verdi se diferenciavam pelo tipo de voz e modo de cantar, mas todos se expressavam por veículos idênticos – as árias de movimentos múltiplos, duetos e conjuntos que, embora um tanto divergentes das tendências internacionais, continuavam sendo os blocos sobre os quais se assentavam as óperas de Verdi. Mas em Rigoletto Verdi, pela primeira vez, faz uma distinção entre os personagens principais pelo modo com que se engajam nesses formatos. Rigoletto é o centro emocional do drama, mas não canta árias de movimentos múltiplos. Ele canta, tipicamente, num estilo declamatório livre, o que permite que a trágica divisão em seu caráter seja manifestada de imediato. Por outro lado, o papel do duque reside em números mais triviais e formais, o que faz com que seu encanto e sua superficialidade se projetem de forma previsível. Apanhada entre os dois, correspondendo ora a um, ora a outro, está Gilda. Nesse sentido, encontramos o celebrado quarteto “Bella figlia dell’amore” do terceiro ato, no qual Verdi realiza uma experiência radical com as vozes: o duque (que conduz a principal linha melódica) é ardente e lírico, pontuado pelo staccato das madeiras e tagarelice de Madalena. Rigoletto, no polo oposto, é obstinadamente não lírico, sua linha é composta de irrupções declamatórias. E Gilda está entre eles, fragmentada e soluçante:

“Estes tempos estão fora dos eixos”, diz Hamlet depois de ver seu pai, que pertence a outro mundo, diante dele nas ameias da muralha. A frase poderia ser um mote para Rigoletto. O público e o privado se entrelaçam de forma perturbadora. As emoções e posturas dissimuladas do mundo público podem penetrar e danificar irremediavelmente os lugares privados nos quais se abrigam os verdadeiros sentimentos. Não é de admirar que Verdi tenha considerado seu protagonista “digno de Shakespeare” – e não é de admirar que Rigoletto tenha marcado um novo e importante estágio em sua carreira operística.