Um pouco de boa vontade se faz necessária para acreditar que tivemos nos Estados Unidos neste ano de 2021 a transmissão pacífica de poder de um governo a outro que é de rigor em democracia. Afinal a democracia prevaleceu e em 20 de janeiro de 2021 ocorreu a posse pacífica do Presidente Biden e da vice-presidente Kamala Harris em um show magnífico de reafirmação democrática e de pluralidade. Não exatamente uma “transmissão”, pois o ex-presidente Trump recusou-se até o fim a cumprir o tradicional rito democrático. E não exatamente uma transição pacífica.

Turbulência semelhante não havia desde a Guerra da Secessão. E mesmo assim, em 1861, o que houve não foi uma tentativa do Presidente James Buchanam de impedir a posse do novo Presidente Abraham Lincoln. O que se repreende ao Presidente Buchanam é sua passividade quando estados partidários da manutenção da escravatura se desmembraram da União depois que Abraham Lincoln ganhou as eleições com uma plataforma eleitoral abolicionista. Quando Lincoln tomou posse, em 4 de março de 1861, já se haviam separado 7 estados que consideravam que não cabia à União abolir a escravatura. A administração Lincoln não aceitou o separatismo e um mês depois teve início a violenta guerra civil que duraria mais de 4 anos, até que a União fosse restabelecida e abolida a escravatura.

Quem registrou que Donald Trump interrompeu 220 anos de tradição das transições democráticas civilizadas está contando desde a transmissão do Presidente John Adams ao Presidente Thomas Jefferson, a primeira transmissão entre partidos políticos diferentes, em 1801, que foi também conflituosa ao extremo, com uma crise constitucional que chegou a colocar em risco a certificação da apertada vitória eleitoral de Thomas Jefferson. Como Trump agora, Adams não compareceu ao Capitólio quando finalmente se celebrou a posse de Jefferson. Mas Adams não foi protagonista na resistência a Jefferson, tinha grande respeito à formalidade, e especula-se que talvez não tenha comparecido à cerimônia por achar que esse ritual era apropriado apenas na transmissão entre presidentes que pertenciam ao mesmo partido, como tinham sido as transições até então.

Inédito em 2021 é que foi o próprio Presidente ocupando o cargo o líder da resistência a entregar o cargo ao sucessor legítimo. A alegação de Trump e de seus aliados foi de fraude na votação e apuração, mesmo sem conseguirem apresentar evidências. Donald Trump manteve até o fim que a eleição lhe fora roubada, que era ele o vitorioso e instigou seus partidários a impedir tal roubo. Nessa incitação à violência também teria um papel inédito o uso das contas oficiais da Presidência nas companhias de mídia social. De tal modo que ficou evidente sua responsabilidade nas ações terroristas de 6 de janeiro.

Prevaleceu a democracia. Por um triz? Pois vale registrar que o ex-vice-presidente Mike Pence resistiu a uma pressão brutal de Trump e de alguns de seus colegas do Partido Republicano para interromper a certificação dos resultados, e os insurretos que invadiram o Capitólio levavam até forca e corda preparadas e explicitamente destinadas àquele que presidia a sessão. Mike Pence respeitou, tanto na sessão do Congresso quanto na cerimônia de posse, os protocolos legais do seu cargo.

Mas houve “transmissão pacífica de poder”? Pacífica ma non troppo. A tropa dormindo vários dias no chão de mármore do Capitólio, depois de uma invasão terrorista que teve cinco mortos, não são imagens de uma transmissão pacífica. A grande democracia americana conseguiu conter a violência dos que não aceitaram a derrota eleitoral, mas teve sua imagem manchada. E milhões de americanos ainda acham que a votação foi roubada.

Há controvérsia sobre o que teria ocorrido no Capitólio em 6 de janeiro de 2021: tumulto? levante? insurreição? golpe? Quem descarta a caracterização de golpe lembra que não houve a clássica ação de surpresa dos militares contra um governante.

Fiona Hill, da Brookings Institution, especialista em Rússia que foi funcionária do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos na administração Trump, estuda golpes há 30 anos e diz que reconhece um quando está acontecendo. Argumenta de forma convincente que o que houve foi um autogolpe de Trump para permanecer no poder, longamente preparado à vista de todos. Lembra os exemplos de Napoleão III em dezembro de 1851, Maduro depois de perder eleições em 2017, ou as manobras de Erdogan em 2015. Uma série de ações tomadas por Trump ou instigadas por Trump durante sua administração é que culminaram no assalto ao Capitólio.

Trump declarou “fraude eleitoral” quando os votos ainda estavam sendo contados. Em seus quatro anos de mandato disse muitas vezes que “merecia” dois e até três mandatos porque havia sido prejudicado “injustamente” e “traído” por causa do que chamou de “embuste da Rússia”, das investigações de Mueller, dos procedimentos para seu impeachment, e que só poderia perder se “eles” roubassem a eleição. Aproveito o resumo de Fiona Hill: “’Eles’ foi o inimigo que [Trump] criou em toscas pinceladas para que suas bases se movimentassem contra: gente do Partido Democrata, liberais, pró-globalização, socialistas radicais, comunistas, esquerda antifascista, o movimento “Vidas Negras Importam”, a imprensa tradicional, George Soros e vários outros homens e mulheres pintados como ‘espantalhos’, burocratas institucionalistas defensores do Estado, e mesmo parlamentares do Partido Republicano que ele chamava de “RINOs (Republicans in Name Only, i.e. Republicanos apenas de nome) e “Never Trumpers” (jamais por Trump).”[1]

Para usurpar e manter o poder é preciso controlar os militares e unidades paramilitares, as comunicações, o Judiciário, o Legislativo, instituições governamentais e mobilizar apoio popular. Tudo isso foi tentado por Trump. A lealdade dos militares foi testada durante os protestos de Black Lives Matter, no episódio em que manifestantes foram expulsos da Praça Lafayete e Trump, acompanhado do Ministro da Defesa Mark Esper e do chefe do Estado Maior, atravessou a praça para tirar uma foto com a bíblia diante de uma igreja histórica. Houve fortes reações contra essas cenas, enfatizando o caráter não político das Forças Armadas. Dez ex-Secretários de Defesa, inclusive Mark Esper, publicaram uma carta aberta antes do 6 de janeiro recordando o juramento dos militares à Constituição.

As tentativas de controle das comunicações são notórias, pelos ataques e tentativas de desmoralizar a imprensa tradicional, favorecimento a veículos de comunicação de partidários, e o uso das contas digitais para se comunicar diretamente com seus “seguidores” e propagar narrativas distorcidas que justificavam suas ações. No Judiciário nomeou três juízes para a Suprema Corte, o último às vésperas da eleição, e sempre deixou claro que, se a Suprema Corte tivesse que decidir sobre a disputa eleitoral, “seus juízes” votariam em seu favor. Mas, em última instância, tanto a imprensa livre quanto o Judiciário resistiram a ofensivas que passavam dos limites constitucionais.

No controle das instituições, Trump sempre deixou claro que a lealdade pessoal era o critério de suas nomeações. Há toda uma lista de seus colaboradores afastados, alguns demitidos por twitter, ao menor sinal de independência (incluída a acima citada Fiona Hill). Removeu o Ministro da Defesa Esper depois que perdeu a eleição, por insuficientemente leal, e o Advogado Geral William Barr renunciou na mesma época em meio a rumores de que seria demitido por não declarar fraude maciça nas eleições. No Legislativo, são conhecidas suas tentativas de transformar o Partido Republicano em seu próprio, alegando que os 74 milhões que votaram nele em novembro votaram nele individualmente e não pelo partido. Em resumo, Trump passou seus quatro anos testando os limites do sistema democrático nos Estados Unidos, preparando a ação final em que mobilizou milhares de seus apoiadores para “impedir o roubo”, quando seu vice-presidente se recusou a bloquear o processo formal de certificação.

A falta de transição normal teve sua ramificação na transferência das contas oficiais da Presidência que as companhias de mídia social tiveram que fazer. Este ano foi de complicação inédita na transferência dessas contas digitais do governo americano, em particular @WhiteHouse, @POTUS e @FLOTUS.[2] Em 2017, o Presidente Obama simplesmente passou suas contas oficiais no Twitter para Trump, com todos os seguidores que juntara. Trump usou estas contas como megafones de sua administração e multiplicou seus seguidores: antes da posse de Joe Biden, @POTUS tinha 33,3 milhões de seguidores, @WhiteHouse tinha 26 milhões, @FLOTUS tinha 16,4 milhões e @VP tinha 10,3 milhões.

Em 2021 não houve transferência civilizada como a feita por Obama: as contas usadas por Trump, e banidas pelas companhias de mídia social em virtude da incitação à violência, terão nome alterado para passar ao Arquivo Nacional. O Presidente Biden de certa forma teve que começar do zero. Twitter estava transferindo para @POTUS contas de Biden da campanha eleitoral e da transição que vai da eleição à posse. Kamala Harris estava transferindo para @VP seus 5,3 milhões de seguidores em @SenKamalaHarris. Tem razão o novo diretor de estratégia digital da administração Biden, Rob Flaherty, ao observar a injustiça que é não transferir os seguidores das contas oficiais no Twitter, porque isso significava dar mais vantagem aos primeiros dias da administração Trump comparados aos primeiros dias da administração Biden.[3]

A transição será mais simples nas outras redes sociais, como Facebook, Instagram, YouTube, Snapchat, que pretendiam usar o mesmo procedimento de quatro anos atrás. Flaherty disse que não se importaria de lidar com seguidores que em tese poderiam ter ideias diferentes daquelas da administração Biden. Eis aí uma complicação adicional a ser considerada na discussão sobre o papel das redes digitais: até que ponto é democrático deixarmos à decisão dos oligopólios das companhias de intermediação digital o que deve e o que não deve ser divulgado? E para quem? Mesmo que Twitter tenha fechado a conta de Trump depois da tentativa de autogolpe de 6 de janeiro, felizmente, em nome da democracia e contra o racismo.

[1] www.politico.com/news/magazine/2021/01/11/capitol-riot-self-coup-trump-fiona-hill-457549

[2] POTUS=President Of The United States. FLOTUS=First Lady Of The United States.

[3] https://www.nytimes.com/2021/01/19/technology/biden-white-house-twitter-account.html