A espetacular vitória de Arthur Lira na Câmara dos Deputados deixará marcas profundas na vida política brasileira, que terão de ser digeridas pela oposição democrática. Pode não ser uma novidade, dadas as características do nosso presidencialismo, que impulsiona o governo federal a se compor com o que se pode ter de “maiorias” no plenário da Câmara. Todo governo age para ganhar o Congresso, valendo-se de recursos mais decentes ou menos. Mas a vitória de Lira teve um diferencial: materializa uma ampla coalizão direitista e fisiológica e expressa com clareza a nova estética política que prevalece no País, na qual o que conta é jogar para a plateia (no caso, o plenário), abusar da demagogia, explorar mágoas e ressentimentos, deixar de lado qualquer protocolo ou manual de boas maneiras. Como no Executivo, a grosseria e a rusticidade predominam, sem qualquer prurido.
A festa com que Arthur Lira e seus apoiadores comemoraram a vitória, em Brasília, foi o suprassumo da estética dominante. Todos sem máscara, bebida solta, abraços e beijos, um festival de breguice e exibicionismo. Dançaram e cantaram como se estivessem a debochar da população enclausurada ou que rala nas ruas para trabalhar.
Há questões que passam pela lógica dos partidos brasileiros: a tendência inerente a eles de serem sugados pelo poder, com suas prebendas e vantagens. DEM, PSDB, MDB, PT, para falar de alguns “grandes”, se estraçalharam com isso. Mostraram pouca coerência e nenhuma lealdade. Deixaram Simone Tebet e Baleia Rossi na mão. Provavelmente não se beneficiaram com cotas orçamentárias, mas deixaram patente a disposição de ficar bem com a “maioria” que controla a Câmara, quem sabe aspirando fazê-la girar em dada direção, e não em outra. O que pesou mesmo foram interesses pessoais, grupais, regionais, muito mais do que princípios ou alinhamentos políticos. Deixaram no ar uma interrogação sobre quem é oposição, por quais razões e com quais intenções.
DEM e PSDB, em particular, que se consideravam líderes de uma espécie de “centro democrático”, saíram desmoralizados, cortados de cima a baixo por desavenças e desentendimentos. Mostraram ser compósitos de correntes que não se entendem: vão pela estrada carregando bagagens em que abundam pequenos interesses e faltam ideias, firmeza, compromissos.
No Senado, o estrago foi menor, o que converteu a instituição em um fator de equilíbrio e no novo locus da articulação democrática. Afinal, a candidatura do vitorioso Rodrigo Pacheco funcionou como um estuário de forças de centro e de esquerda, desenho que não se viabilizou na Câmara. O MDB “cristianizou” Tebet, mas não rompeu com a coalizão que terminou por prevalecer. No Senado, Bolsonaro não nadará à vontade. A Casa poderá fazer um contraponto ao que se antevê como recrudescimento direitista na Câmara, com um Arthur Lira se entregando a um plenário fragmentado e desorganizado, à agressividade típica de um “cabra da peste”, cego para o País, concentrado em seus interesses e modus operandi.
Lira fez questão de insistir na tese da Câmara independente, mas enfatizou também a ideia de que ela precisa agir em “harmonia”. Com quem? Ele mencionou a direita, a esquerda e o centro, mas seus olhos brilham mesmo para o Palácio do Planalto: as pautas que interessem a Bolsonaro e não o desafiem. Se conseguirá fazer isso, é algo a ser visto mais à frente. O fato, porém, é que tentará, o que já é suficiente para mudar o eixo de atuação da Casa. Irá se valer do estilo que tem feito sua fama, e que já foi associado à figura do “rato de plenário”, que circula sem parar, ouve conversas e confidências, abraça quem encontra pelo caminho.
Na sessão de abertura do ano legislativo, Lira comprometeu-me a “não medir esforços para que a harmonia se traduza numa pauta comum em prol de toda a sociedade”. Para ele, “a hora é de superarmos antagonismos, deixarmos para trás eventuais mágoas e mal-entendidos e unirmos forças para que saiamos maiores desta crise, para que o povo brasileiro sinta-se bem representado por cada um de nós, sinta-se protegido e atendido nas suas necessidades prementes”. A Câmara precisaria sair da “paralisia interna provocada por problemas políticos passageiros que a História sequer irá registrar”.
Lira nem sequer considerou o País que se espalha para além da Câmara. Sua briga era para ganhar o “baixo clero” e os trânsfugas, e foi para eles que discursou. Falou também para Bolsonaro, mostrando um espírito de colaboração que terá de ser posto à prova dia após dia.
Para celebrar tamanha disposição colaborativa, o governo acenou com diversos projetos na área econômica e de costumes, embrulhando tudo num pacote com o selo de “reformismo”, mas que não passa de um cozido mal temperado. Como escreveu Carlos Melo no Estadão, “ter mais de uma prioridade é não ter prioridade alguma”. Haverá, portanto, muita negociação, afora as surpresas, os erros, os humores sociais. A pauta reacionária dos costumes e dos direitos humanos, que o bolsonarismo quer privilegiar, não será digerida automaticamente e terá de ser negociada caso a caso.
Para Bolsonaro, descortina-se um cenário inédito. Ele ganhou, mas não necessariamente se beneficiará disso. Terá maior presença no Congresso, mas perderá um de seus ativos eleitorais, o de que não faria o “toma-lá-dá-cá” da “velha política”. Por extensão, estará impossibilitado de reclamar que suas pautas estão bloqueadas pelos parlamentares. Sua incompetência e sua falta de ideias ficarão ainda mais evidentes, assim como a falta de bons articuladores, que terão de ser terceirizados. Abrirá um flanco que, se bem explorado pelas oposições, poderá leva-lo a chegar enfraquecido a 2022. A incapacidade de governar, o descaso com que trata a crise sanitária, a miséria programática da política econômica e social são coisas que precisam ser denunciadas de forma clara, objetiva, sem maiores firulas analíticas.
Virar a página
No episódio da eleição dos presidentes da Câmara e do Congresso houve também algumas camadas de cálculo estratégico: afirmou-se a opção de esfriar o clima, desgastar eventuais lideranças que despontavam para 2022, caso de Rodrigo Maia. Ele mostrou habilidade nos quatro anos em que presidiu a Câmara, mas morreu na praia. Quando mais se necessitava de um coordenador, perdeu força. Foi queimado por seu próprio partido, que expôs as vísceras do que se tinha como alto poder de articulação. Maia tentou formar uma “frente ampla” que antecipasse 2022, mas não conseguiu. Sai chamuscado, e terá de correr atrás do prejuízo, que foi enorme.
O ambiente congressual esfriará o tema do impeachment, empolgações à parte. A batalha agora será no tempo regulamentar, onde a sabedoria terá de prevalecer, mais que a agitação.
É hora de virar a página. Ficou evidente que Bolsonaro ganhou fôlego e não será politicamente diminuído se continuar a ser tratado como a besta-fera genocida que só tem olhos para os seus. Atacá-lo por ser um ogro fascista que fala coisas estúpidas e reacionárias não machucará sua carcaça. O jogo ficou mais complexo e complicado: exigirá linguagem programática e capacidade de bater onde a dor seja mais forte, aqueles pontos em que a fragilidade fique escancarada. As oposições terão de se esforçar mais e aperfeiçoar seu modus operandi, em termos práticos e discursivos. Antes de tudo, precisarão definir se desejam caminhar juntas e articuladas. A ressaca talvez as ajude a apurar o foco e ganhar musculatura para uma disputa de mais longo prazo.
Trata-se, em suma, de por em movimento uma operação política que mostre à população a tragédia que vem sendo alimentada sistematicamente pelo governo Bolsonaro. A começar da deliberada ação para menosprezar o vírus, os cuidados e as vacinas, o que desagregou o País e conteve qualquer impulso de recuperação. Mas também a incompetência governamental generalizada. Não há um ministério que se salve, que tenha realizações a apresentar, que possa dizer que fez algo para o bem dos brasileiros. Há desemprego e inflação, a miséria cresce, sem que o auxílio emergencial (o de ontem e o futuro) sirva para outra coisa que não o aumento da popularidade do presidente.
As oposições democráticas, se decidirem agir de fato, precisam ir onde o povo está. Saber se comunicar, engavetar personalismos e querelas partidárias, falar o que a sociedade precisa ouvir, tendo em vista seus interesses, suas expectativas e sua indignação. Precisam mostrar que os problemas são enormes e que, para enfrentá-los, serão necessários governos ativos e competentes.
Para serem de fato uma alternativa, as oposições devem tratar o Palácio do Planalto como um adversário que requer inteligência e pertinácia para ser derrotado, num trabalho de construção cotidiana, sem arroubos retóricos infrutíferos. Que se deixe a bandeira do impeachment tremular, como ameaça e imã de agregação, mas que se compreenda que o impeachment não é um ato de vontade unilateral, a ser imposto sem uma adequada correlação de forças na sociedade e no Congresso. O importante, agora, é reagrupar o que está disperso e definir, o quanto antes, com quem é que se irá a 2022.
O destino vai levar esse navio à deriva nos proximos meses. Pode ser que ele afunde no decorrer, pode ser que encalhe às portas de 2022. Sempre parece difícil que se orquestre uma ação planejada, visando um fim objetivo. Por aqui é tudo na sorte ou azar. Um nome digno vai surgir? Com sorte, sim. Com azar…
É tarefa para poucos, abordar com clareza tema de tamanha relevância e complexidade. Parabéns por tê-la feito com esmero.
Permita-me, contudo, um breve comentário. Houvesse sido eleito Baleia Rossi, deixaria de haver o fisiologismo e o compadrio que têm imperado na política nacional e na relação Executivo-Parlamento? Parece-me que para depurar essa nefasta prática político-partidária é necessário, a curto-médio termo, uma reforma política que evite definitivamente a insensatez de possuirmos mais de trinta partidos de aluguel. E a longo prazo, uma mudança na cultura política e na qualidade do voto. Ambas imprescindem de uma educação decente para todos – o que nunca tivemos.
Entrementes, nesta semana, o Haddad declarou ser o ungido pelo “chefe” do lulopetismo como candidato à presidência, em 2022, em provável disputa com o “capitão”. Sendo assim, contra a pandemia do populismo brasileiro parece ainda não haver vacina eficaz.