An Old Man Writing a Book by Candlelight, Godfried Schalcken. Dutch Baroque Era Painter (1643 – 1706).

 

Sempre brinco com os jovens estudantes de Letras: pergunto-lhes que desgosto lhes deu na alma para seguirem tal curso. Mal sabem que estão falando com um interlocutor da área. Bem sei que o desgosto não é deles, mas dos pais. Sim, dos pais, que, sempre querem “o melhor para seus filhos” e temem pelo futuro economicamente incerto com que as tais Letras acenam a seus discípulos.

Numa sociedade ainda patriarcal e altamente conservadora como a nossa, com perversa concentração de renda, bem se sabe que as Letras nada oferecem senão sacrifícios. No mais, nada teriam do brilho (justificado, é claro) de áreas como o Direito, a Engenharia, a Medicina, a Arquitetura e outras mais. Já conversei com pais ilustrados e doutos que simplesmente ignoram a escolha ou a vocação dos filhos e os obrigam a cursar faculdades mais prestigiosas. Insinuam a seus herdeiros que fujam das Letras e de quase todas as ciências humanas. Que fujam como o diabo foge da cruz! Enfim, é de pequenino que se torce o pepino! Isso para evitar o pepino da pobreza, quando não, o da simples e pura “inutilidade”.

Marcel Proust, dentre tantas e vastas ironias que nos legou no seu imenso romance “Em busca do tempo perdido”, também toca no tema. E como toca! Diz o herói/narrador que seu pai, sabendo do seu desejo de ser escritor e seguir Letras, chegava a recusar o nome de “carreira” para tal caso. O desgosto e o desprezo são patentes. No romance, não sabemos a profissão exata do pai, um homem bem-sucedido e burguesmente bem posicionado, mas, na vida real, bem sabemos que o pai do escritor, igualmente bem-sucedido, foi um nacionalmente renomado médico francês.

Não sei se o nobel japonês Kenzaburo Oe leu Proust. É muito provável que tenha lido. Pois bem, para meu ácido encanto de letrado, Kenzaburo toca na mesma tecla logo no começo do seu recém-lançado no Brasil “Morte na água”. O tio do narrador protagonista vira-se pra ele e questiona: 

“— Soube que você também ingressou na universidade em que meu genro se formou e o parabenizo, mas que ramo você escolheu seguir?

Quando lhe respondi que escolhera a Faculdade de Letras, deixou transparecer claramente sua decepção. [grifo nosso]

— Nesse caso, não podemos esperar que você consiga arrumar um bom emprego… — comentou. [grifos nossos]

Contudo, minha mãe, pessoa habitualmente discreta, respondeu da seguinte maneira e me deixou aturdido, pois, naqueles tempos, eu só pensava em me tornar um estudioso da língua francesa:

— Ora, se não conseguir emprego, esse menino na certa vai ser escritor! — No silêncio que se seguiu, o que ela acrescentou prestamente desfez a tensão e levou todos a rir: — E material para romance ele tem o suficiente dentro da minha ‘maleta de couro vermelha’”.

Como se pode notar, a mãe, por assim dizer, salva o filho de uma saia justa. A opacidade do desgosto logo é substituída por uma perspectiva brilhante: a de o filho vir a ser um escritor. Bom que se diga que a narrativa de Kenzaburo se passa nos dias de hoje no Japão contemporâneo, o que torna a cena ainda mais emblemática, fazendo jus ao sábio dito popular: “Lá como cá, más fadas há!”…

Pois bem, querem essas más fadas que os fados dos que seguem a carreira das Letras sejam na verdade um fardo. Se já não for pobre, o aluno de Letras, caso também não tenha posses de família, logo se candidata a uma vaga na pobreza, o que, convenhamos, não é nem um pouco animador. A desolação é geral e, como na cena de Kenzaburo, nem se consegue disfarçá-la.

Enfim, temos, dessa forma, uma significativa ocorrência em três mundos diversos: o Japão contemporâneo, a França de fins do Oitocentos e o Brasil atual. No caso do Brasil atual, há um agravante insidioso: um governo que despreza a ciência, a cultura e as artes; que desenha uma distopia obscurantista, aclamada e desejada, que pouco engana em seus desígnios, e ignorante de que nosso mundo foi moldado pela literatura, como o demonstra Martin Puchner, professor de Harvard, em seu belo livro “O mundo da escrita”. É, sim, com os letrados — em obras, em salas de aula, em editoras, em traduções, em consultorias, etc. — que o mundo segue em sua “marcha insensata” (como disse Proust), mas civilizatória. O mesmo vale para a Filosofia e as chamadas “ciências humanas”, as quais, mesmo à falta de melhor rótulo, continuam humanas e humanizadoras, capazes de produzir um Proust e um Kenzaburo.