Há alguns meses, recebi um e-mail, enviado por uma senhora de quem até então nunca ouvira falar, chamada Nadir Xavier de Andrade, baiana, escritora premiada, fascinada pelo povo cigano. Na época, segundo informava, estava concluindo mais um romance, que ganharia o título de “Sava” e cujo enredo envolvia personagens desse povo, cuja história se perde no fim dos séculos. Gentilmente, a escritora informava que havia lido uma crônica minha, cujo título era exatamente “A Menininha Cigana”, e pedia permissão para publicá-la no seu livro. Claro que permiti – e agradeci à escritora pela deferência. Na minha longa vida de repórter, nesse mundo sem porteira, talvez uma das lembranças que eu jamais vou esquecer foi o rosto triste e o sentimento de desamparo que eu vi no semblante daquela menina cigana. Reconto aqui, com pequenos ajustes, a história que comoveu a escritora Nadir Xavier de Andrade. E que me marcou como um ferro em brasa marcava os escravos de nossa memória. Foi assim:

– No final dos anos 80 do século passado, uma violenta guerra civil iniciou o processo de desmonte da antiga Iugoslávia, que reunia diversas facções étnicas e religiosas, buscando cada uma a sua autonomia, num processo autofágico que surpreendeu o mundo. Desde o final da Segunda Guerra, a Federação Iugoslava se mantinha unida nas suas diferenças graças à mão forte do General Tito, o líder que mobilizou seus guerrilheiros contra as tropas de Hitler, num exemplo de coragem e resistência que ficou na História.  A morte de Tito foi o sinal aberto para o esfacelamento da Iugoslávia, um ajuntamento de sérvios, croatas, montenegrinos, kosovares e sabe-se mais o que, além de dezenas de milhares de ciganos.

A imprensa europeia não se cansava de noticiar os horrores daquela guerra insana, e mostrar o drama das levas de refugiados que abandonavam as áreas belicosas e que, apesar das negociações dos organismos internacionais, inclusive a Cruz Vermelha, eram impedidos de cruzar as fronteiras dos países da Europa Central. Entre eles, a Alemanha. Eu estava por lá quando o conflito se intensificou e fui, um dia, desde Munique, até o primeiro acampamento de refugiados. Aquilo já era o efeito colateral de um conflito insano, que não poupava culpados ou inocentes. Era também um espetáculo estranho aos nossos olhos – aquela gente de fisionomia triste e impressão de abandono, homens, mulheres, crianças, idosos, todos transmitindo a sensação de desesperança que contagiava quem lá chegasse. Entre aqueles fugitivos, sujos, mal vestidos, desgrenhados, me chamou a atenção um grupo de excluídos entre os próprios excluídos: o povo cigano. Havia uma espécie de “apartheid” entre os refugiados e as caravanas de ciganos, que também fugiam da guerra, como se o destino de uns nada tivesse a ver com o futuro dos outros. Vi, numa tenda cigana, com esses meus olhos que já viram tantas misérias no mundo, uma meninazinha com não mais de 8 anos dividir um pão seco com o irmão menor, as mãozinhas frágeis e sujas segurando com avidez aquela primeira refeição, a resignação diante de uma realidade sem futuro nem esperança. Ao lado, um homem adulto, cabelos pretos e oleosos, vários anéis nos dedos, comia lentamente uma maçã distribuída pelas voluntárias que davam apoio à Cruz Vermelha, ele também com o olhar perdido e sem saber que destino teria a sua caravana. Essa guerra civil da Iusgolávia marcou a terceira diáspora do povo cigano, e cerca de 280 mil almas deixaram suas tribos, seus acampamentos, sua identidade, para continuar a sina nômade e castigada nas periferias das grandes cidades da Itália, da Espanha, da Áustria e de Portugal.  Naquele dia, pensei comigo: Meu Deus, por que essa criança, menor do que minha filha (hoje eu diria “menor do que minha neta”), não tem um lar, não tem um leito, uma escola, não tem ao menos a garantia de uma refeição decente, não tem sequer a certeza de que estará viva quando chegar a primavera?       Quem condenou o povo cigano à eterna provação? Por que o imaginário popular espalhou que os ciganos são descendentes de Caim? Ou das tribos de Israel que fugiram do Egito para evitar o ódio dos faraós? Por que carregam eles a triste fama de terem roubado os pregos que pregaram Jesus na cruz?

Nunca li um livro que enaltecesse o povo cigano, que mostrasse seus filhos como habilidosos instrumentista, suas mulheres como exímias dançarinas, seus patriarcas como sábios conselheiros, algumas vezes luzes e guias no conduzir de suas caravanas.

Depois daquela manhã fria, na fronteira da Alemanha com a atual República Tcheca, passei a cultivar um certo respeito silencioso ao povo cigano. Nunca me saiu da memória o gesto da meninazinha com suas mãos magras repartindo o pão com o irmão menor, a lona furada cobrindo o teto da carroça, certamente para que, na sua incerta caminhada, numa noite de estrelas, os seus viajantes pudessem olhar para o céu e invocar a presença de Deus.