Conheço dois casais “negacionistas”, desses que até hoje abraçam a tese de que uma hora todo mundo tem mesmo que morrer, de que Brasília não pode ser culpada por um vírus “fabricado” na China e que o Planalto fez muito bem em recusar 11 ofertas internacionais de imunizantes porque bastava distribuir vermífugo para a população que tudo estaria resolvido. O que não se resolvesse, bem, era a cota de Deus, a vontade soberana Dele. Um desses casais me ligava regularmente quando eu estava em Paris para deplorar a catástrofe europeia. Sorrindo, ela dizia: “Se você quiser, a gente coloca hidroxicloroquina dentro de um livro e te manda. Aqui tem funcionado. Vamos orar!”  Regozijando-se de levar vida normal, atribuíam a reputação tétrica do Brasil às forças ocultas da esquerda. Paradoxalmente, tão logo as vacinas foram disponibilizadas em seus torrões de origem, foram os primeiros a se vacinar.  Na hora de empunhar uma bandeira verde e amarela numa carreta patética em que pediam intervenção militar e o fim do STF, se alinhavam ao que há de mais obscurantista e medieval no mundo. Na hora de salvar a pele, na surdina, deram vivas à ciência.

É uma grande lástima que a coerência não tenha levado essas pessoas a cederem seu lugar na fila a quem lutou e esbravejou para que vestíssemos a carapuça de ser o que somos há algum tempo: uma ameaça global, um covidário pulsante, um perigo para o mundo, um país que tem, desde o primeiro dia, um lugar assegurado no pódio da vergonha. É fácil, portanto, sair do posto de vacinação e se prevalecer do esforço da maioria para, na mesma manhã, ir cantar musiquinhas ditas patrióticas ao lado de imbecis de sua grei, como se estivessem numa final de Copa do Mundo. É ser duplamente canalha, para dizer o mínimo. Da mesma forma que é revoltante quando um elo dessa corrente primitiva, senão seu líder, vem a público deplorar a morte de alguém de cujo atestado de óbito consta sua rubrica. A torpeza se multiplica por dez quando a vítima galvanizava pelo talento e carisma, alguns milhões de admiradores. A vontade que dá é de gritar: “Não lamente, vá passear de moto. Vá dançar com o patife do Crivella diante de um milhão de evangélicos. Vá passear de jet ski e contamine mais uma dúzia. Não pense que nos engana.”

Engolir certas condolências é revoltante. Para quem vem de um imenso histórico de silêncio em frontal desrespeito a centenas de milhares de luzinhas que foram se apagando, certos pêsames são puro escárnio. É imoral se pronunciar a respeito de um, destacadamente, de olho em dividendos políticos. Para, na mesma hora, telefonar para o Senado e urdir novas maracutaias para se isentar da imensa, única e inegável responsabilidade de ter sabotado – “por pensamento, palavras e obras” –  o combate frontal à pandemia dentro de nossas fronteiras. Não pensem vocês que se alinharam cegamente ao escândalo planetário protagonizado pelo Brasil que nós vamos esquecer suas risadinhas, suas ironias, seu sarcasmo e seu fatalismo de ocasião – tudo feito “para livrar o Brasil do comunismo”.  Vocês são idiotas fanatizados de papel passado, disso ninguém duvida. Mas são mais do que isso. Vocês foram os nutrientes dessa catástrofe. Com sua atitude, vocês a regaram. Tenham a dignidade de silenciar diante de alguém que morreu por culpa indireta das claques que vocês integraram. Todos os atores dessa tragédia têm nome. Não os esqueçamos.

Não deixemos, por fim, que o líder supremo mande condolências ao lado bom do Brasil. É o mínimo, visto que não podemos negar ao lado ruim acesso às salas de vacina. Se o fizéssemos, faríamos o jogo deles. Vacina que os outros trouxeram para recuperar a criminosa omissão de agosto de 2020 – quando ainda havia lugar para a esperança. Não os esqueçamos.

*Artigo censurado pelo Facebook após 40 minutos no ar, 144 curtidas com 32 compartilhamentos,