“A memória é o espelho onde observamos os ausentes.” Joseph Joubert (1754-1824).

 

Uma personagem de Proust, em “O Caminho de Guermantes”, terceiro volume de “Em busca do tempo perdido”, pergunta a outro personagem: “Você nunca leu Joubert? Teria lhe agradado tanto!”. Com essa alusão, Proust faz uma tão discreta quanto sensível homenagem àquele escritor que, segundo alguns, foi um de seus autores de cabeceira. E decerto uma das maiores homenagens que se pode fazer a um escritor é indicá-lo a um potencial leitor.

Joseph Joubert (1754–1824) foi praticamente um dos últimos moralistas franceses, uma família de escritores que atravessa os séculos e tem nomes como Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, La Bruyère, Chanfort, Rivarol e Vauvenargues. Como se sabe, o termo “moralista” aí nada tem de praticante de moralismo, quase sempre utilizado num sentido pejorativo. Dessa forma, pode-se dizer que os moralistas franceses nunca foram moralistas. Eles pertencem a uma comunidade espiritual que estuda, revela e esclarece o comportamento humano. São psicólogos e pensadores que atuam num território amplo, que, de certo modo, para nossa mente contemporânea tão voltada a especialismos, também é um terreno impreciso. São filósofos sem sistema, pensadores que de uma maneira geral estão mais interessados num “como viver” do que em criações metafísicas, estéticas ou ontológicas. Sem organizar sistemas, eles fazem de seus “insights” um conjunto de reflexões que tanto abarcam vícios e virtudes como questões relativas à vida social, aos costumes, à estética, à literatura, às paixões da alma e, enfim, à própria sabedoria.

A admiração de Proust por Joubert pode ser traduzida no epíteto “divino”. Ele o chamava “o divino Joubert”. Por sua vez, os estudiosos de Joseph Joubert garantem que ele foi de fato um homem excepcional e quase “invisível”, tal a discrição com que se portava em sua vida pública e em todos os assuntos. Não temia sombras e compartilhava seus pensamentos com seus amigos. Consta que, aos quarenta anos, teria dito que queria ser perfeito e que só isso poderia contentá-lo. Também sabe-se que nunca publicou um livro. O que ia escrevendo em vários cadernos era guardado num baú. Após sua morte, esse baú foi cuidado por ninguém menos que René Chateaubriand, seu amigo pessoal desde a juventude, e pela viúva do pensador.

Os biógrafos observaram que, à diferença de vários outros moralistas, os pensamentos de Joubert nada têm de amargura (muito embora, como Proust, fosse um enfermiço e acamado). E de fato é assim: ao escrever reflexões sobre os mais diversos assuntos, Joubert se pauta por uma serenidade rara. Seus pensamentos e máximas quase sempre são expostos com uma apolínea clareza, sem ranço ou azedume. Dizê-los sutis é redundância.

Ao falar de si mesmo, Joubert segue a orientação generosa que nos deixou, qual seja: a de ser indulgente com todos, menos consigo próprio! Joubert é, antes de tudo, uma lição de tolerância (“A mais doce temperatura da indulgência me é necessária”). Ele também tem várias características modernas e antecipadoras, inclusive na área literária. Com modéstia, nos diz que é mais afeito a semear do que a construir e a fundar. Persegue a síntese, a exatidão e o equilíbrio. Diz ele de si mesmo: “Se há um homem atormentado pela maldita ambição de meter todo um livro numa página, todo uma página numa frase e esta frase numa palavra, este homem sou eu”.

O leitor, a essa altura, já terá notado que, para falar de Joubert, passamos a ele a sua própria palavra. Que ele continue falando e se apresentando, pois o fará melhor que nós. Ao refletir sobre si mesmo, deixa-nos um retrato austero, consciente das próprias singularidades: “Em todas as coisas, parece-me que as ideias intermediárias me faltam ou me entediam muito” e ainda: “Metade de mim zomba da outra”. Ao se ver enquanto escritor, demonstra-nos fleuma, paciência e verdade: “Não é minha frase que estou polindo, mas minha ideia. Então, eu paro até que a gota de luz de que tenho necessidade seja formada e caia de minha pena”. Joubert não é homem de se lamentar e de maldizer, daí aquela sensação de falta de amargura já notada em suas máximas.

Para Raymond Dumay, em seu ensaio “Um Dom Quixote da sabedoria”, “Joubert provou que um otimista podia escrever bem e que era possível falar inteligentemente do homem sem, por isso, maldizê-lo”. O que não é pouco, quando a negatividade da condição humana é tão frequente tanto entre seus pares, os moralistas, quanto em pensadores tão diversos quanto um Hobbes, um Pascal, um Calvino e um Maquiavel, sem falar que essa negatividade também abarrota o barco de quase toda a literatura moderna. Talvez daí Proust o ter chamado “o divino Joubert”.  Evidentemente, seu pensamento nada tem de um otimismo ingênuo, como ele próprio parece reconhecer nestas palavras: “Tudo não é santo nos santos nem luz nos homens esclarecidos”.

Para concluir, este conselho (e Joubert foi, segundo seu biógrafo G. Pailhès, um grande conselheiro, sempre pronto a ajudar os que o rodeavam): “Tende um espírito onde a verdade possa entrar nua e sair bem vestida”.