Dança – Toulouse Lautrec (1895).

 

Joubert, o moralista francês, nos diz que, assim como o vinho chama o seu bebedor, um livro deve chamar seu leitor. O certo é que faz tempo um conto de Machado de Assis me chama, não para lê-lo, pois o li várias vezes, mas para escrever um pouco sobre ele. É texto que, por culpa do próprio Machado, não está em livro de sua bibliografia. Foi relegado ao limbo que os autores criam: nem livro nem cesta, nem memória nem esquecimento. Dispensável dizer que autores, por melhores que sejam, equivocam-se quanto às próprias produções. Penso que foi o caso do conto “A chave”, publicado, em seis capítulos, por Machado no periódico fluminense “A Estação”, entre 15 de dezembro de 1879 e 15 de fevereiro de 1880. O texto, recuperado pelos críticos, está na Obra Completa, volume 2, publicada em 1979 pela Nova Aguilar, sob a rubrica “Outros Contos”.

“A chave”, portanto, embora extraordinário, não teve a sorte de outras obras-primas do gênero criadas por Machado. A essa altura, vocês já se lembraram de “A cartomante”, “Missa do galo”, “Um apólogo”, “Teoria do medalhão” e “O alienista”. E lembraram bem porque são criações magistrais e clássicas, que desafiam os anos e se impõem como um patrimônio cultural. “A chave”, escrito por volta dos 40 anos do escritor, vem naquele conhecido momento de virada em que Machado vai se libertando de sua inicial fisionomia romântica e está em vésperas de escrever, numa segunda fase, seus grandes romances — “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Dom Casmurro”, “Quincas Borba” e “Esaú e Jacó” — e seus melhores contos. É “chave”, portanto, que dá voltas técnicas e vem nos apresentar o Machado que se torna maduro e genial.

O enredo de “A chave” não é uma “história sem data”, pois começa numa data precisa: 7 de outubro de 1861, quando percebemos que os banhos de mar tinham chegado pra ficar e contavam com muitos adeptos. Permitam-me a deselegante ousadia de resumi-lo.

É amanhecer na Praia do Flamengo, e o Major Caldas, que por muitos anos “cultivou as letras com ardor verdadeiramente deplorável”, está com sua filha, Marcelina, que sabe nadar como uma “náiade”. Naquela manhã, o mar está agitado, mas Marcelina, que tem “a doidice das moças em flor” (lembra Proust), parece a gosto em meio a outros banhistas e em meio às ondas. Mas alguém não tira os olhos de sua beleza e tenta puxar conversa: o jovem “tritão” Luís Bastinhos, o que, de certa forma, a deixa agastada. Na areia, o major lê o “Jornal do Commercio”.  Não obstante sua destreza de nadadora exímia, Marcelina de repente se vê em maus lençóis: começa a se afogar, a morte espreita. Mas eis que Luís Bastinhos, de quem desdenhara o flerte, consegue salvá-la.  O major vibra e exulta. E o rapaz, muito bem-vindo, passa a frequentar a casa de Marcelina, que lhe é grata, mas indiferente à sua corte.  Luís Bastinhos não se declara à moça, embora nele o major aposte suas fichas. Enquanto isso a filha pensa em outros pretendentes que se dissipam pelo caminho (“Nenhum  homem lhe abrira deveras o coração. Quem sabe se a fechadura não servia a nenhuma chave? Quem teria a verdadeira chave do coração  de Marcelina?”). Logo se verá que “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Para animar as coisas, o major promove saraus. Num desses saraus, o “circunspecto” Bastinhos toma para dançar uma prima de Marcelina e se torna uma revelação, pois valsa divinamente. Aquele sucesso (que “ele sentiu nos olhares sorrateiros de outros rapazes”) torna  Marcelina, pela primeira vez, suscetível às suas discretas investidas. Ela o convida para dançar… Ambos, depois, passam a “valsar sem música”…

Um amigo de Bastinhos segreda-lhe ao ouvido no dia do casamento que “em certos casos era melhor valsar que nadar, e que a verdadeira chave do coração de Marcelina não era a gratidão, mas a coreografia”.

É com lúdica ironia que Machado por assim dizer desmonta o romantismo. A “gratidão”, entrevista equivocadamente pelo major, não é de fato “a chave” do coração de Marcelina nem poderia sê-lo numa jovem sensual e ardente. É com a dança, com o corpo, que as “almas” se entendem. Machado sutilmente também subverte a autoridade paterna, pondo o romântico major num lugar de apenas coadjuvante ou de um cenarista que deve conhecer o seu lugar. O que também abre o coração de Marcelina não é apenas a “coreografia” da valsa, mas o que essa coreografia tem de social (“o casamento era a verdadeira valsa social”, como descobre Bastinhos); como signo, a valsa traz a riqueza da técnica e do dom, promete uma vida social e um compromisso que não está na aparência dos salões, como se pode pensar à primeira vista. Machado, despojando-se dos lugares-comuns românticos (dos quais galhofa ao longo do texto), volta-se às epifanias do inconsciente, do “coração”: a “chave” de Marcelina não era tão sublime ou sublimada como a gratidão sonhada por um pai conservador, mas, de fato, carnal, capaz de “giros” que, por sua vez, entregam e desnudam as verdades mais íntimas…  Revelando-se exímio dançarino, Bastinhos, por sua vez, deixa de operar no modo “platônico” e “circunspecto” e se torna hábil, confiável, prático, capaz de melhor exteriorizar sua sensualidade e seus sentimentos. Bastinhos agora é “bastos”, capaz de “bastar-se”, de “encorpar-se”. E Marcelina parece cumprir a destinação que o seu nome discretamente sintetiza: é do mar e do céu, domina ambas as esferas…, pertence à conhecida galeria de mulheres fortes do escritor.

Com “A chave”, Machado mostra como a sua ironia começa a se tornar um recurso poderoso e faz com que ela dê tantas voltas quanto ele queira. Mas, sóbrio, o escritor pratica o equilíbrio. Deste resulta uma economia textual eficaz, rica, como sempre, de surpresas e sutilizas. Com certeza, “A chave” não era um conto para ficar no limbo. Que razões Machado terá tido para deixá-lo à margem? Que senões com essa obra-prima?  É curioso. Mas o que não é curioso vindo do bruxo do Cosme Velho?