Cataventos de Cabo Frio by DJANIRA da Motta e Silva.

 

Os dois ponteiros do relógio se superpõem no tempo. Meia noite. A fronteira entre a quinta trabalhada, e trabalhosa, abre lugar à sexta feira. A decifrar. Pela manhã, gravei live para curso de ciência política. À tarde, revisei aula sobre questão social e liberalismo. E terminei de ver mais um capítulo de série francesa de tv, intitulada Nina. História de enfermeira de um hospital em Paris. Cativante. Encantadora a forma como a dor no hospital é amenizada na humanidade de personagens.

Uma das pacientes é senhora que acolheu em seu apartamento estudante universitária. A estudante não sabe que a senhora tem câncer. Só sabe que sua anfitriã é uma mulher alegre, que lida bem com a vida. Põe música e dança sozinha na sala de casa. E faz do sol de cada dia a última chance de dar volta em parque próximo de sua residência. A estudante toma choque ao saber da doença de quem a acolheu. E pergunta a ela:

– Como consegue tal alegria mesmo tão doente?

Lembrei do filme italiano de Roberto Bernigni, A Vida é Bela. E de como um prisioneiro de campo de concentração conseguia ultrapassar o limite da tragédia. Lembrei de Isaiah Berlin que experimentou na vida real tal sofrimento. E, sem ressentimento, produziu uma obra rara. De estilo e beleza.

Ficção e realidade misturando episódios transcendentes em minha cabeça. Nesta madrugada serena e fluvial de meu outono apascentado. Fico pensando, no inesperado silêncio urbano, como a vida é dádiva magnífica. Nas pequenas grandes coisas que se nos oferece. Nos momentos seminais. Desde os pássaros que trinam cedinho anunciando o primeiro canto da manhã. A construção de aula na troca de palavras entre gerações que requer prévia leitura da Carta sobre Tolerância, de Locke. A companhia do encanto renovado que me reinaugura no dia a dia. A recuperação da saúde de estimado amigo, há mais de quarenta anos.

Penso na graça com que Deus inspira meus passos peregrinos. E nos obstáculos que enfrentam alguns alunos que estão ao meu redor. Antes de fechar o micro, sempre dou uma olhada no grupo de Whatsapp das turmas. Esta noite, num deles, acompanhei o diálogo entre duas alunas. Uma delas fazia o transbordo de transporte, entre estações, na altura das dez e meia. E demonstrava medo por causa da hora. Uma colega perguntou:

– Tem gente esperando também o ônibus ?

– Sim, quatro pessoas.

– Tudo bem. Qualquer coisa, avise no grupo.

Em vinte minutos, fomos avisados de que ela estava segura em casa. Podia fechar o micro. Encerro o dia. Nada a reclamar. Só agradecer. E protestar contra ministro que, no chão de vil subserviência, recomenda que pais não vacinem filhos adolescentes. Vai passar. Com a brevidade do Narciso.

E, para terminar, recolho no travesseiro um soneto de Carlos Pena Filho:

Multiplicar-me-ei em mil cinzentos

Desta maneira, lúcido, me evito

E a estes pés cansados de granito

Saberei transformar em cataventos.

17.09.21.