“A vida ainda havia de confrontá-los com outras provas mortais, sem dúvida, mas já não tinha importância: estavam na outra margem.” GGM em “O amor nos tempos do cólera”
Qual a “opus magnum” de Gabriel García Márquez? A Wikepedia, repetindo grande parte da crítica e da opinião pública, é assertiva: “Cem anos de solidão”. E é verdade, mas há quem ache “O amor nos tempos do cólera” a obra-prima do autor. De minha parte, penso que este último romance fica a poucos milímetros do primeiro. Segue-o de perto, é irmão mais moço, que segue de perto o irmão mais velho, com ele rivaliza, desafiando-o tempos afora.
Por estes dias, reli “O amor nos tempos do cólera”. É uma obra-prima. A narrativa é fluente. Não só fluente como veloz. Não só veloz como arrebatadora, imantando o leitor à obra, a uma vitalidade inerente tanto ao tema e aos subtemas como à estrutura do romance. Aqui e ali, estrategicamente inseridos, pontos de surpresa, breves reversões de expectativa ou simplesmente a adição de episódios que são como que afluentes do grande rio principal, performando uma espécie de bacia hidrográfica, um ecossistema que se fecha sobre si mesmo.
Quanto ao tempo, lembremos que a narrativa é em terceira pessoa e em flashback e que seu entendimento é mais o de uma longa duração do que simplesmente a de um tempo marcado pelo relógio. A longa duração está a serviço da complexidade da vida que o romance emula. É contra o tempo que também luta o amor de Florentino Ariza por Fermina Daza. E é como se o amor de ambos fosse uma prova de que, sim, se pode vencer o tempo, de que se pode contrapor o sonho da vida à perspectiva do envelhecimento e da morte.
“O amor nos tempos do cólera” é um poema em prosa. A poesia e o lirismo nele desempenham uma função constitutiva e inarredável. Nesse particular, García Márquez sabe como poucos dosar metáforas e imagens ao longo da narrativa. Não falo aqui de realismo mágico, falo de equilíbrio e de maturidade, ambos de quem sabe que conta uma história para ser crível, quase que palpável, mas em que a fantasia é, ela própria, um atributo da realidade. De vez em quando, como um clarão de lirismo, uma metáfora aviva as brasas da narrativa, aderindo naturalmente às palavras do narrador: “[…] seu amor perdurava em soluços, e suas pálpebras começavam a mostrar a sombra das velhas tristezas. Era uma flor de ontem”.
“O amor nos tempos de cólera” não é só um poema, é um poema de amor, o que nas mãos de um autor menor costuma desandar por completo. Mas García Márquez arquitetou sua obra de modo a desafiar e a demonstrar a criatividade de Eros. As personagens centrais de Juvenal Urbino, Fermina Daza e Florentino Ariza foram construídas para sondar a pluralidade do amor no coração dos homens. Nesse passo, sente-se que o romance roça o folhetinesco (aliás, com o qual ironicamente dialoga sem cessar), mas o supera pelo distanciamento e a habilidade com que talvez o mais comum dos temas é tratado. Eis uma das glórias do livro. Márquez não se furta nem ao sublime nem à crueza da sensualidade mais vital, assim como não se furta aos paradoxos e ambivalências do próprio amor.
Embora sendo um vasto e saboroso poema em prosa, o romance se engrandece com a descrição social (mais alusiva que detalhista) de uma Colômbia ainda apegada aos costumes coloniais, afogada em guerras civis, vivendo entre males e contrastes que nós, latino-americanos tão bem conhecemos: a cega e desastrosa exploração da natureza; a miséria sempre vizinha de um luxo cenográfico e de mau gosto; a corrupção ostensiva e cotidiana; a política caricata e autoritária; enfim, um mundo precário e por si mesmo pitoresco no qual se sucedem gerações sem que o processo civilizatório avance de forma significativa.
Em tal contexto sociocultural, é peça-chave o papel de prócer do doutor Juvenal Urbino, não só grande médico como benfeitor da sociedade em que vive, insuflando-lhe como pode e a seu modo o amor das artes, da literatura, da música, da higiene de que tanto se impregnou a Europa da virada do século 19 para o 20. A propósito, o narrador logo nos faz saber que, tendo se formado em Paris, o doutor Juvenal Urbino “foi aluno do epidemiólogo mais destacado do seu tempo e criador dos cordões sanitários, o professor Adrien Proust, pai do grande romancista”. Eis a inspiração profissional para combater o flagelo do cólera endêmico, cujos sintomas viscerais são, segundo o narrador, os mesmos da paixão amorosa.
Para concluir, um destaque singular do livro: o papel essencial das cartas e, dentre estas, claro, o das cartas de amor. Não obstante a presença do telégrafo, a narrativa é rica de menções a cartas, o que também retrata toda uma época. O próprio Florentino Ariza, que consagra sua vida a esperar pelo amor de Fermina Daza, é um fecundo escritor de cartas, a ponto de ver muitas dessas suas produções como “páginas de um livro que gostaria de ter escrito”… Como redator de cartas para um vasto público de contemporâneos analfabetos (algo comum em várias sociedades com alto índice de analfabetismo), Florentino Ariza chega a protagonizar o divertido episódio em que ele escreve diversas cartas tanto para o namorado quanto para a namorada que tentam se aproximar pelas palavras; assim, quando o casal descobre a verdadeira autoria, em sinal de gratidão, o convidam para padrinho de casamento!
Enfim, as cartas formam uma cartografia de captura do tempo, dos momentos que fogem; ambicionam, em meio à vertigem dos dias, demarcar clareiras, salientar reflexões e compromissos. São elas chaves para a reconstituição e a ancoragem da subjetividade fugidia de cada um. Num mundo de paixões à flor da pele, parecem atenuar o tríplice incêndio do esquecimento, do tédio e do desespero.
Ao contrário do amor do Quixote, que idealiza Dulcineia a ponto de abstraí-la de Eros, descarnando-a da realidade, o que encontramos em “O amor nos tempos do cólera” é a serenidade lúcida de que o amor pode, sim, ser “privilégio de maduros” e idosos, de que transcende o ramerrão do cotidiano, pois, após uma espera de cinco décadas de Florentino Ariza por Fermina Daza, “Era como se tivessem saltado o árduo calvário da vida conjugal e tivessem ido sem rodeios ao grão do amor” e “o amor era o amor em qualquer tempo e em qualquer parte, mas tanto mais denso ficava quanto mais perto da morte”.
Bela resenha, que cumpre sua missão de divulgar uma obra motivando o leitor tanto para leitura como para releituras.
Obrigado, Gilvando.
Abraço cordial
Meu comentário numa rede social, sobre um dos momentos mais delicados do livro do GGM.
Noite de sexta-feira com chuva fina e intermitente. A temperatura amena o bastante para desejá-la o ano inteiro, independente da estação. O silêncio na varanda é ocupado pelo blues da guitarra de Joe Pass.
Lendo O amor em tempos de cólera, do colombiano Gabriel Garcia Marquez. A história da paixão de Florentino Ariza por Fermina Daza. “Só me dói morrer se não for por amor”. O trecho do romance descreve as primeiras noites de lua de mel de Fermina Daza e o doutor Juvenal Urbino. Florentino Ariza havia fracassado na tentativa de casar com Fermina.
O doutor Juvenal e Fermina estavam em viagem de lua de mel para Paris, de navio. Deitados nus em uma cama, o doutor Juvenal traz a mão da esposa Fermina e a coloca sobre o seu peito…
E segue a história: “Ela não soube como foi que a sua mão chegou até o peito dele, e esbarrou em algo que não soube adivinhar o que fosse. Ele disse: ‘É um escapulário’. Ela tentou, até o ponto em que sabia que não ia machucá-lo, e depois foi sua mão que buscou a dele perdida nas trevas. Mas ele não deixou que os dedos de novo se entrelaçassem, agarrando-lhe o pulso e conduzindo a mão dela ao longo do próprio corpo com uma força invisível, mas muito bem dirigida, até que ela sentiu o sopro ardente de um animal em carne viva, sem forma corporal, mas ansioso e arvorado. Ao contrário do que ela imaginou, mesmo ao contrário do que ela própria teria imaginado, não retirou a mão, nem a deixou inerte onde ele a pôs, mas, encomendando-se de corpo e alma à Santíssima Virgem, cerrou os dentes com medo de rir da própria loucura, e começou a identificar pelo tato o inimigo empinado, tomando conhecimento do seu tamanho, a força do seu talo, a extensão de suas assas, assustada com sua determinação mas compadecida de sua solidão… “ Nunca pude entender como é esse aparelho”, disse Fermina Daza ao seu amado.