Gilberto Freyre, em várias passagens de sua vasta obra, nos chama a atenção para a importância humana e ecológica das árvores nas cidades tropicais do Brasil. A colonização se fez a golpes de machado. As árvores, seus frutos e suas sombras foram banidos da paisagem. A monocultura da cana devorou a mata. Sem árvores, o sol, num eterno meio-dia ardente, fustiga as cidades e os homens, cega-lhes a vista, cresta-lhes a pele.
Em livro inspirado e inspirador, “Nordeste”, Freyre nos lembra que o Homem “é também natureza. E não apenas cultura.” Obra pioneira, de caráter ecológico, esse incontornável ensaio freyriano tem o subtítulo de “Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem no Nordeste do Brasil”. Livro sobre o qual me debrucei para escrever um estudo porventura inovador, intitulado “O imaginário da terra e das águas em ‘Nordeste’, de Gilberto Freyre”, um ensaio de tintas bachelardianas, publicado pela revista “Arrecifes”, da Prefeitura do Recife, sob a competente edição do saudoso crítico e poeta César Leal.
Em “Sobrados e mocambos”, Freyre lamenta a perda da influência oriental (e sua valorização da sombra) sobre as cidades brasileiras. No antológico capítulo “O Oriente e o Ocidente” daquela obra, o sempre atento sociólogo pernambucano registrou como, por volta de 1800, buscava-se afastar a rica influência do Oriente no País. Essa influência, entre tantas outras contribuições à formação nacional, favorecia a sombra, contrapondo-se ao excesso de luz e de calor. Havia, então, os “ocidentalistas”, e estes clamavam por uma europeização completa, chegando um de seus defensores a falar de um “desassombramento” do Brasil. Freyre explica e explicita: “desassombramento” por meio do uso do vidro inglês, da construção de ruas largas em detrimento de becos como os do Recife, do Rio, de Salvador, de São Luís; por meio do corte dos excessos de barbas de “mouro”, de “turcos” e “nazarenos”; por meio de novos sistemas de iluminação e dos costumes. O que vinha de encontro, assinala Freyre, a “uma saudável adaptação do Homem ao Trópico” já propiciada pelo Oriente entre nós. Daquela região longínqua, lembra ele, vieram também árvores frondosas que logo se aclimataram ao nosso ambiente: a mangueira, a jaqueira, a gameleira, a fruta-pão, à sombra das quais tanto descansavam os escravizados quanto se reunia, em importantes eventos sociais e domésticos, a própria elite.
Para nos atermos à província de Pernambuco, lembramos que Freyre, já num artigo de juventude, havia denunciado que o Recife é “uma cidade sem árvores”, “cidade tropical sem árvore”… Se, desde então, houve melhoras na capital, várias estimuladas pelo próprio sociólogo, não se pode dizer o mesmo das nossas cidades do interior, onde a regra, ainda hoje, é a falta de árvores e o excesso de luz solar e, por consequência, uma insolação patológica e naturalizada. Desconfiamos da sombra? Não deveríamos.
À pergunta acima, é certo que a resposta seria “sim”, se fosse feita ao grande escritor japonês Junichiro Tanizaki, romancista e ensaísta, para quem todo o Ocidente sempre ostenta brilho e luz, como que de costas aos encantos da sombra. É o que afirma em seu tão celebrado quanto conciso ensaio “Em louvor da sombra”, publicado, aliás, no mesmo ano que “Casa-grande & senzala”: 1933. Até onde estou informado, só há pouco, em 2017, “Em louvor da sombra” ganhou edição brasileira, com tradução de Leiko Gotoda.
O título do livro, “il va sans dire”, é o sumo de uma tese. Menos que uma defesa, é de fato um louvor e um texto poético. Inspirado em remotas tradições do Japão, em especial no que toca às edificações (daí porque o texto tem uma evidente interface com a arquitetura), Tanizaki, a exemplo do próprio Freyre, é um culturalista atento às transformações por que passava o Japão da sua época, então, como se sabe, nos primórdios de sua hoje mais franca ocidentalização. Como o autor de “Casa-grande & senzala”, o escritor também se detém em aspectos ecológicos que, a olhos mais apressados, pareceriam tão somente menores e invisíveis. Um exemplo disso é quando nos diz que o papel “além de macio e cálido, também se harmoniza mais que o vidro com uma casa japonesa”. O natural também se faz presente quando se detém em considerações sobre as ancestrais latrinas japonesas: sombrias, arejadas, silenciosas, cujas paredes de madeira gozavam de frestas para se apreciar a natureza ao redor: os pássaros, as flores, o luar e a brisa. O que o ensaísta deixa tácito (ou nem tanto), se pensarmos no contexto em que escreveu, é como a tecnologia nos influencia a um modo de agir e de pensar. Eis também o que nos oferece sua reflexão, que, obviamente, transcende um mero nacionalismo superficial.
O ilustre japonês nos assegura que seus conterrâneos sentem um “desassossego diante de objetos cintilantes” e lhes apraz “observar o tempo e marcar sua passagem esmaecendo o brilho do metal, queimando e esfumaçando sua superfície”. Adverte, porém, que “Isso não significa que todo brilho nos desgoste, mas, ao superficial e faiscante, preferimos o profundo e o sombrio”. Assim, termina por nos sugerir a exploração das potencialidades práticas e líricas da própria sombra.
Não precisamos dizer que Tanizaki, longe de ser literal e puramente tradicionalista, faz como que uma apologia poética ao louvar um mundo mais sombrio e misterioso, não necessariamente enigmático, em que não desapareçam as seduções da noite. A raiz histórica dessa visão, esclarece ele, é que seus ancestrais foram obrigados a habitar aposentos escuros e, por isso, terminaram por descobrir a beleza das sombras em que viviam.
Quanto à arquitetura, além das considerações sobre o interior da tradicional residência nipônica, mesmo se confessando um leigo, Tanizaki nos observa o quanto as construções ocidentais, diferentemente daquelas do seu país, são feitas para “insolar o interior e evitar a formação de áreas sombrias”. Dessa forma, o telhado japonês é um “[…] guarda-sol, o ocidental é apenas chapéu. Aliás chapéu de aba bem estreita, um boné, que possibilita o acesso dos raios solares à área sob o beiral”. Há que se buscar e ver na sombra um conforto psicológico e ambiental, e não uma simples opacidade.
Finalmente, ao fim de seu ensaio, o escritor expressa, aliás de modo muito semelhante ao de Gilberto Freyre, sua preocupação com o desmatamento (portanto, com o “desassombramento” de seu país), sempre justificado em nome do progresso e apresentado como meio, no caso do Japão, de “facilitar o acesso das massas” a “novas áreas urbanas”. Em suma, é preciso que nós outros, ao vivermos sob o vigoroso sol tropical, procuremos a sombra, dialoguemos com a sombra e restabeleçamos sua dignidade e seus benefícios em favor de uma vida melhor. Afinal, como escreve Tanizaki, “Eliminar até a sombra das árvores é, no mínimo, cruel”. Freyre, em suas bucólicas sombras de Apipucos, no Recife, assinaria embaixo.
Excelente, Paulo Gustavo. “Nordeste”, além de pioneiramente ecológico, é poético e serve de farol agora. Escrevi sobre isso em 2006, num livro de botânicos, José Alves Siqueira e Helton Leme, “Fragmentos da Mata Atlântica do Nordeste.
Mais uma vez se aprende com o mestre Paulo Gustavo. Por mim, sempre achei que a grande obra Gilbertiana seja “Casa Grande & Senzala”. Um dia, Clóvis Cavalcanti me alertou para “Nordeste”, que continua uma lacuna nas minhas leituras. Instigado por esse artigo, Nordeste vai entrar na fila, agora junto com o japonês das sombras. Estas, em ano eleitoral, sempre ameaçadas (as benfazejas sombras de velhas árvores) pela sanha das malditas “Emendas Parlamentares”, mediante as quais os prefeitos têm destruído tantas praças e jardins nas cidades do interior brasileiro. Eita paisão atrasado…