O intelectual constrói suas verdades. Um mundo na sua imaginação. Muito mais através de suas leituras do que com sua vivência prática. Seu modo de ver o que ocorre passa por conceitos e percepções que se alicerçam em entendimentos que lhe são transmitidos, e dos quais tem a pia certeza de serem corretos. Até o dia em que se demonstram falsos ou incoerentes. Os livros são seu balizador, seu referencial primeiro. Muitos ensinamentos.

Na década dos setenta do século passado, tive acesso a Marshal McLuhan. Seu conceito de Aldeia Global me impressionava. A base para as redes mundiais, o sentido de eliminar os limites, de abstrair as barreiras dos Estados Nacionais. Um mundo globalizado e interconectado. Muitas críticas surgiram. Lembro do saudoso Milton Santos. A idéia de que isso teria sentido para as grandes corporações, mas não para a sociedade como um todo, não para abstrair a força que os Estados individuais continuariam a ter. Tinha razão, mas o fascínio pelo conceito de uma sociedade que poderia ser construída de forma mais coesa e menos desigual era base para reflexões que se tornaram verdades. A comunicação como caminho para uma nova sociedade.

Meu teórico favorito em Economia é Schumpeter. Sempre me dediquei à teoria da inovação e nela alicercei meus trabalhos. Considero “Capitalismo, Socialismo e Democracia” uma obra fantástica, base do pensar do mundo em que vivemos. Com Marx e sua obra, permite entender a essência do capitalismo, sua lógica intrínseca, seus caminhos, inclusive a concentração dos frutos do progresso técnico. Não acho pertinente, neste curto espaço, aprofundar esses caminhos, mas quero ressaltar uma frase de seu livro de 1911, Teoria do Desenvolvimento Econômico: “O mercado não é dado, é criado”. 

O mito de que os mercados é que direcionam a atividade humana é invertido. Na verdade, o homem vai criando necessidades e, através das inovações, hábitos que ampliam o poder de concentração do grande capital. A figura do mercado é um mito utilizado para direcionar novos desejos, os quais não existiam, dos quais jamais se poderia “abrir mão”. Em pouco tempo, nem lembramos os atos e costumes pregressos. Sempre tivemos internet e redes sociais instantâneas, no nosso imaginário? Não foi o mercado que os criou, mas o homem, em seu desejo de acumulação, que os impôs.

Depois de pequenos textos, dou-me o prazer de ler um livro de Yuval Harari, “Sapiens, uma Breve História da Humanidade”. Evidentemente, não é texto que, diria, vai marcar minha formação acadêmica. Não considero que tenha uma base de sustentação sólida, mas mostra o quão rica é a imaginação do autor. 

Um conceito me faz lembrar Nietzsche, o de Ordem Imaginada. Não existiria uma verdade absoluta, mas sempre seria relativa, seria o consentido socialmente, aquilo que a crença humana admitia como algo irrefutável.

Harari chama a atenção de que não existiria uma ordem universal, mas que ela seria construída na imaginação e aceitação pela sociedade. Para tanto, não é só necessário educar as pessoas, como também fazer crer que ela não é imaginada e sim concreta, irrefutável. O conceito de Democracia, por exemplo, como o melhor dos sistemas políticos. Não pode ser questionado, mesmo que venha acompanhado de muitas iniquidades sociais.

Dessa maneira, a ordem passa a ser enraizada, passa a ser algo que faz parte do pensamento e do modo de ver de todos. Com ela, todo o ideário que nos move se direciona na busca de seu aperfeiçoamento, no desejo de vê-la imperando em nossa sociedade, em nossa civilização. Todas as outras formas seriam retrocessos.

É um processo de construção histórica. Muito pode ser dito sobre ele. O que mais me interessa é ressaltar algo que o autor diz com muita propriedade. Não sendo verdade absoluta, se baseia em mitos, que são aceitos e não refutados. Este é o seu ponto fraco. Diz ele: 

“Uma ordem imaginada corre sempre risco de desmoronar porque depende de mitos, e os mitos desaparecem tão logo as pessoas param de acreditar nele. Para proteger uma ordem imaginada, é preciso despender esforços árduos e contínuos”

Os leitores podem perguntar o porquê de trazer esses três autores. Acredito haver uma conexão muito grande deles para compreender o momento atual. 

A Ordem Imaginada que nos venderam fez muitos pensarem numa sociedade mais justa, em que o processo de interconexão faria diminuir a exclusão social e o desequilibro social. Fez acreditar que todos são iguais e temos direitos à dignidade, esquecendo que a pobreza absoluta e a miséria ainda são a realidade de grandes parcelas da humanidade. Os emigrantes africanos e os desnutridos brasileiros foram encobertos, foram ignorados nas declarações dos povos desenvolvidos. O mundo a ser construído prescinde deles, não fazem parte do problema atual. 

O mercado, no seu afã de criar acumulação de riquezas, ignorou os desfavorecidos, mas provou que o mundo pode continuar na luxúria nababesca dos 10% mais favorecidos, ignorando os outros 90%. Cria-se um mundo paralelo, fictício, real no imaginário, de proporções enormes, o financeiro. Novas necessidades criadas a cada momento, novos dispêndios sem nenhuma necessidade para a sociedade como um todo. Agora podemos fazer turismo intergaláctico, desde que tenhamos módicos milhões de dólares. Os problemas de educação e saúde são secundários. 

Embora os instrumentos da “Aldeia Global” tenham se concretizado, em nada ajudaram para diminuir a exclusão social, usados para uma sociedade cada vez mais competitiva, cada vez mais escrava das novas ferramentas. Temos Internet e 5G, temos ultravelocidade para sofisticação, temos produção de alimentos abundante que poderia diminuir a fome, mas não pensamos em mecanismos de real popularização dos avanços sociais e tecnológicos.

Mas o pior: a proliferação de mitos que foram criados. Que são inquestionáveis para parcelas significativas da sociedade. Que criam a cada momento “bodes expiatórios”. Que transformam mentiras em verdades pela repetição mais que sistemática. 

Uma Ordem Imaginada doentia, que se baseia em classes de elite, que “não dão a mão a pobres, não falam com pretos, não carregam embrulhos.”