Liszt fantasiando ao piano (1840) diante de Paganini e Rossini. Óleo sobre madeira de Josef Danhauser (1805-1845), exposto na Alte Nationalgalerie dos Staatliche Museen zu Berlin.

 

Conhecemos inúmeras celebridades musicais que arrebanharam legiões de fãs, dos moderados aos alucinados. Mas como surgiu esse culto a estrelas da música? Podemos voltar no tempo – 300 anos atrás – e encontrar os castrati, cantores submetidos à castração antes da puberdade para preservar a mesma extensão das vozes femininas. Farinelli, cuja vida já virou filme, é o mais conhecido deles. Talvez tenham sido os castrati os primeiros cantores a atrair fãs ao redor dos palcos, que disputavam mechas de seus cabelos e pedaços de suas roupas. Mas e entre os compositores? Como nasceu esse fenômeno? Vamos ao início do século XIX.

Nos últimos anos de vida de Beethoven, apesar das críticas do gênio ranzinza, o público austríaco tinha sede de ópera italiana, especialmente a de Rossini. Quando o “Cisne de Pésaro” visitou Viena pela primeira vez, o influente Allgemeine Musikalische Zeitung informou: “Foi o bastante, mais do que o bastante. O espetáculo inteiro foi como uma orgia idólatra; todo mundo agiu como se tivesse sido mordido por uma tarântula: os gritos, brados, berros de ‘viva’ e ‘forza’ não pararam.” Poucos anos depois, um visitante inglês reclamou que “a população de Viena é doida por Rossini; doida não só por ele, mas por seus piores imitadores: com bons ouvidos toleram o pior da música”.

Não só em Viena, mas por toda Europa, Gioacchino Rossini (1792-1868) dominou a cena musical como um colosso. Seu sucesso avassalador foi um sinal claríssimo de que a dimensão pública da música atingira a maioridade, rompendo definitivamente com as apresentações privadas para a nobreza. Em seu próprio país, essa onda era poderosa o suficiente para englobar grande parte da população urbana. No auge de Rossini, o poeta inglês William Rose registrou de Veneza que as árias de Rossini – como “Di tanti palpiti” (vídeo abaixo) – eram cantadas por trabalhadores nas ruas com paixão. Seu amigo e colega expatriado Lord Byron escreveu na mesma época: “Encenou-se recentemente uma ópera esplêndida em San Benedetto – de Rossini – que veio em pessoa tocar o cravo. A população seguiu-o por toda parte – coroou-o – cortou mechas do seu cabelo ‘como lembrança’. Ele foi aclamado, cantado em sonetos, festejado – e imortalizado bem mais que um dos imperadores”.

Como sugere o comentário de Byron, o culto público ao herói vinha elevando o músico a esfera antes reservadas apenas a reis e generais. Em 1824, Stendhal publicou sua Vida de Rossini, que começa assim:

“Napoleão está morto; mas um novo conquistador já se revelou ao mundo; e de Moscou a Nápoles, de Londres a Viena, de Paris a Calcutá, seu nome está constantemente em todas as bocas. A fama desse herói não conhece fronteiras exceto as da própria civilização; e ele nem sequer completou 32 anos! A tarefa que me impus é rastrear os caminhos e circunstâncias que o levaram em idade tão prematura a tal trono de glória.”

A renda de Rossini era proporcional: numa única temporada em Londres teria ganhado 30 mil libras líquidas, uma fortuna pelos padrões da época. Em uma década, ele estava tão rico que pôde passar 40 anos com aposentadoria opulenta, jamais voltando a compor uma ópera. Rossini era um músico carismático capaz de estabelecer uma relação direta com seu público, o que, de acordo com Stendhal, foi o segredo de sua fama. 

Ultimamente as palavras “carisma” e “carismático”, desgastadas pelo uso banal sobre qualquer figura pública que chame a atenção de jornalistas, tornaram-se sinônimos de “charme” e “charmoso”. Mas na sua origem “carisma” significava simplesmente “dom de Deus”, tendo seu emprego atual se originado da classificação tripla – tradicional, legal e carismática – da autoridade legítima feita por Max Weber. Na Europa do início da Idade Moderna, o carisma era entendido como derivado diretamente de Deus e conferido na coroação do soberano por meio da unção sacramental.

Com a secularização da autoridade política na Revolução Francesa, essa fonte externa de carisma foi descartada. O carisma passou a ser uma qualidade puramente interna, derivada das qualidades pessoais do indivíduo. Para Tim Blanning, historiador da Universidade de Cambridge, o primeiro líder carismático autônomo moderno foi Napoleão Bonaparte, que começou do nada, não acreditava em nada, conseguiu tudo e no final não tinha mais nada. Mas praticamente todos que o conheceram, a despeito do que pensavam dele, comentaram a extraordinária força de sua personalidade, encanto, autoridade, noção de destino, autoconfiança – em suma, carisma.

O perigoso mundo novo inaugurado por Napoleão exerceu um efeito tão profundo sobre a cultura quanto sobre o Estado e a sociedade. De todas as artes, a música estava em melhor posição para tirar vantagem da promoção do carisma como legitimador. A comparação entre Rossini e Napoleão não foi um capricho de Stendhal, mas uma visão profética. Se Stendhal tivesse vivido na segunda metade do século XX e testemunhado o impacto exercido por Elvis Presley ou John Lennon, teria razões de sobra para se sentir justificado.

Logo depois do episódio napoleônico, o músico que mais se destacou no cenário musical foi o violinista Niccolò Paganini (1782-1840). Nascido em Gênova, só na meia-idade ganhou fama fora da Itália. Sua reputação brilhou brevemente, mas em poucos anos de excursões arrebatou a Europa. Sua habilidade como violinista deu um novo sentido à palavra “virtuose”. Paganini logo conquistou imensa fortuna, ficando mais célebre por seus 24 Capricci, dos quais o vídeo abaixo traz o último. 

Pouco antes de retornar à Itália de uma longa turnê internacional, completamente exausto, contou a um jornalista alemão que fizera 162 concertos no espaço de 12 meses, ganhando 42 mil francos num deles. Não apenas o público, mas músicos, intelectuais e críticos caíram aos seus pés. Suas primeiras apresentações em Paris foram vistas por Delacroix, Donizetti, Liszt, Musset, Rossini e George Sand. Após sua primeira apresentação em Londres, um crítico do Times escreveu: “Além de ser o melhor intérprete que já existiu nesse instrumento, ele forma uma classe por si mesmo.” Em Viena, onde tudo que fosse italiano era tratado com desdém pelos intelectuais, outro crítico escreveu: “A cada nova realização aumenta a convicção de que ele é o maior instrumentista que o mundo da música já conheceu”.

Ninguém podia negar: a habilidade técnica de Paganini era fenomenal. Mas não se tratava apenas disso. Ele atraia – e cultivava muito atentamente – uma aura de mistério, perigo e até diabólica. O fato de sua carreira decolar tão tarde foi considerado especialmente sugestivo. Circularam rumores de que ele havia aperfeiçoado sua técnica enquanto cumpria 20 anos de prisão pelo assassinato da amante – e de que sua corda de sol era feita de parte do intestino da vítima. Outros foram mais longe: ninguém conseguiria tocar tão bem sem auxílio sobrenatural – portanto, Paganini devia ter capturado o diabo em sua caixa de ressonância ou firmado um pacto faustiano com o dito-cujo.

Alguns aspectos extramusicais chamavam a atenção em Paganini. Ao seu repertório ele acrescentou duas características que acabaram se tornando importantíssimas: a capacidade de representar e a sensualidade. Para aumentar a tensão, aperfeiçoou a arte da entrada retardada no palco de concerto, chegando somente quando a expectativa do público atingia o delírio. De seus inúmeros artifícios, o mais famoso foi aparecer com três ou quatro cordas do violino soltas – e depois executar brilhantemente uma peça com a única corda remanescente. Também tinha o cuidado de cultivar seu mistério, não permitindo a publicação das músicas que tocava nos concertos: memorizava tudo que ia tocar. A combinação de arte e artifício criaria uma imagem de grande força.

Paganini rasgou o céu musical como um meteoro para depois cair de volta na Terra. Mas antes de sua morte, um astro bem mais brilhante e duradouro havia se elevado ao firmamento. Era o húngaro Franz Liszt (1811-1886), que havia ido a Paris aos 12 anos com o pai; assistiu a um concerto de Paganini e ficou impressionado: “Que homem, que violino, que artista! Céus! Que sofrimento, que angústia, que torturas naquelas quatro cordas! […] Quanto à sua expressão, seu fraseado – são sua própria alma!”.

Todos que o ouviram reconheceram que Liszt era tão talentoso ao piano quanto Paganini ao violino. Após seu primeiro concerto público em Viena, com apenas 12 anos, o Allgemeine Musikalische Zeitung relatou que alguns expectadores haviam clamado “Um prodígio!” – enquanto outros suspeitaram de algum tipo de truque, até que o piano foi colocado num ângulo oblíquo para que o público pudesse ver que o próprio Liszt estava tocando. 

Pouco tempo depos, Felix Mendelssohn – outro gênio prodígio da música – saiu da sala de uma exposição de pianos em Paris fazendo sinal negativo com a cabeça e declarando que acabara de presenciar um milagre. Seu novo e extremamente difícil concerto para piano tinha sido tocado por Liszt com grande brilho e sem nenhuma falha, ainda que ele nunca tivesse visto a partitura antes. Também apreciado compositor, Liszt aumentava seu acervo com peças dificílimas, como os Grandes Estudos de Paganini, de quem ele tomou emprestado alguns temas para explorar ao piano – a exemplo do vídeo abaixo.

Como no caso de Paganini, a técnica impecável foi apenas o início. Liszt também tinha a capacidade de inspirar nos ouvintes a crença de que era sobre-humano, conseguindo transportá-los a um nível de experiência estética antes impensável. “Quando Liszt adentrou, foi como se um choque elétrico tivesse atravessado o salão. […] Toda a aparência e os movimentos de Liszt revelam uma daquelas pessoas que notamos exclusivamente por suas peculiaridades; a mão divina deixou nelas uma marca que as tornam observáveis em meio a milhares”, disse Hans Christian Andersen em 1840.

A fama conquistada por Liszt foi proporcional à sua habilidade, superando a de qualquer músico anterior. Aonde quer que fosse cabeças coroadas faziam questão de conhecê-lo, adulá-lo e condecorá-lo. Ao deixar Berlim em 1842, viajou numa carruagem puxada por seis cavalos brancos, seguido por um cortejo de 30 outras carruagens e uma guarda de honra de estudantes, enquanto o casal real acenava adeus do palácio. Estava viajando com um passaporte emitido pelas autoridades austríacas com estes simples dizeres: “Celebritate sua sat notus” (Notório por sua fama). O clímax – ou melhor, o “reductio ad absurdum” – talvez tenha sido alcançado quando circulou o boato de que Liszt iria desposar a rainha Isabel II da Espanha, de quinze anos, que havia criado para ele o título de Duque de Pianozares. Além do talento ímpar, Liszt também famoso por sua beleza física na juventude, com 1,85m de altura. A natureza lhe foi bastante benevolente.

Liszt foi tudo que Paganini havia sido, mas em maior grau. Beneficiou-se promovendo uma imagem sofisticada e culta. Cativou o mundo literário de Paris, relacionando-se com escritores da estatura de Balzac, Dumas e Victor Hugo. O fato de saber que era o maior pianista que havia existido e que podia dialogar com outras celebridades das artes dotou Liszt de autoconfiança – mas sem nenhum traço de arrogância. Também se tornou querido pela burguesia liberal da Europa por sua indiferença a privilégios sociais, mesmo diante de altas autoridades. A propósito, arriscada foi a afronta a Nicolau I da Rússia, que chegou atrasado a um recital seu e começou a conversar. Liszt parou de tocar e ficou imóvel, com cabeça abaixada. Quando o czar perguntou por que a música não continuava, Liszt respondeu com frieza: “A própria música deve silenciar quando Nicolau fala”.

Entre 1838 e 1846, Liszt apareceu mais de mil vezes em público nos quatro cantos da Europa, e aonde quer que fosse era recebido por um público arrebatado, em especial o feminino. O Oxford English Dictionary registra que o temo “beatlemania” foi usado pela primeira vez em dezembro de 1963 pelo Times, como um “fenômeno que se expressa em bolsas, balões e outros artigos que lembram os objetos de adoração ou nos gritos histéricos de moças sempre que o quarteto Beatles se apresenta em público”. Heinrich Heine, por sua vez, havia inventado o termo “Lisztmania” para identificar um fenômeno semelhante observado nos concertos de Liszt: “Um frenesi sem igual na história!”. As mulheres usavam sua imagem em camafeus e broches, brigavam para recolher resíduos de sua xícara de café, dilaceravam seus lenços e luvas, exibiam guimbas de seus charutos em medalhões incrustados com diamantes, transformavam suas cordas de piano em braceletes, e assim por diante. Nem a idade avançada diminuiu a capacidade de Liszt despertar adoração.

Possivelmente a maior realização de Liszt tenha sido completar a transição dos músicos da posição social de servos para a de senhores. Seu biógrafo Alan Walker exprimiu bem esse fato ao escrever que, “graças à sua genialidade singular e natureza intransigente, Beethoven forçara a aristocracia vienense a encará-lo ao menos como seu igual. Mas restou a Liszt promover a visão de que um artista é um ser superior, com dons divinos, e de que o resto da humanidade, seja qual for a classe social, devia-lhe respeito e até deferência.” Era o triunfo da música atingindo alturas inéditas.