Houve uma época em que os partidos políticos eram vistos como usinas de ideias e quadros. Máquinas organizadas a que se somava um programa político estruturado. Ao menos em termos teóricos, eram tratados como organizações territoriais difusas que tinham como referência um programa articulado e respeitado, que seria empregado como símbolo de identidade.
Essa imagem diferenciaria o partido político moderno das demais formações políticas tradicionais, que representavam, basicamente, agregações oportunistas em torno do poder. O diferencial, portanto, seria a capacidade de formular ideias programáticas e levá-las organizadamente à sociedade.
O marxista italiano Antonio Gramsci foi o mais brilhante formulador teórico dessa teoria. Concebia os partidos como tendo uma função orgânica, na medida em que reagiam sobre as classes sociais com o intuito de desenvolvê-las, consolidá-las, universalizá-las. Desse modo, os partidos cumpriam uma função precípua na “fase hegemônica” das relações de forças políticas entre as classes, ou seja, naquele momento em que os impulsos de direção, organização e educação das massas jogam o papel principal.
Gramsci estava convencido de que os dirigentes políticos são uma decisiva ferramenta para a existência de uma política democrática transformadora. Via os partidos como uma escola de formação de quadros: “não pode haver elaboração de dirigentes onde falta a atividade teórica, doutrinária, dos partidos, onde não são estudadas sistematicamente as razões de ser e de desenvolvimento das classes representadas” – ele escreveu nos Cadernos do Cárcere (Civilização Brasileira, vol. 3). Na sua concepção, o mero fato de alguém se tornar membro de um partido representaria uma opção de tipo intelectual, dado que o sentido da militância partidária seria prover a sociedade (seguidores, simpatizantes, eleitores) de um vetor de organização consciente e da capacidade de compreender o mundo e elaborar visões concatenadas do mundo. O militante partidário típico seria, assim, um educador.
Mais ainda quando o partido em questão se propusesse a ser revolucionário, a atuar como um “moderno Príncipe”, ao estilo de um Maquiavel ressignificado: um organismo em que se sintetizam germes de vontade coletiva que buscam se tornar universais e criar “um novo tipo de Estado”. Isso, para Gramsci, seria trabalhar para promover uma “reforma intelectual e moral” que crie o terreno para um novo desenvolvimento (mais civilizado) da vontade coletiva nacional-popular.
Seria trágico, para ele, se os partidos fossem substituídos pelas burocracias estatais ou pelo “Estado-governo”, pois, nesse caso, as instâncias governamentais e o chefe de Estado operariam como “partidos” informais e se dedicariam a desagregar os partidos existentes, separando-os das grandes massas da sociedade. O Estado-governo daria curso à formação de correntes de cidadãos “sem-partido” que se ligariam diretamente ao governo por vínculos paternalistas ou bonapartistas: a interlocução seria entre o chefe de Estado e as massas, uma situação bem próxima do que associamos hoje ao populismo.
Acontecia algo assim na Itália dos anos de Gramsci (1920-1935), em que o fascismo de Mussolini se implantava. Aconteceu algo assim no Brasil republicano e acontece assim em muitas democracias dos nossos dias, a começar da brasileira.
Pois bem. A época dos partidos como máquinas capacitadas para produzir ideias e travar a luta política de forma elevada não existe mais.
Antes de tudo, os partidos foram fortemente afetados pela globalização (que lhes problematizou a base nacional) e pelas mudanças estruturais derivadas do advento da internet e das novas formas de trabalho. As classes sociais se fragmentaram e não puderam mais funcionar como referência e sustentação aos partidos. À esquerda, a redução e a transformação da classe operária – juntamente com a emergência de um universo de trabalhadores de múltiplas facetas e visões do mundo – sugou o patrimônio identitário dos partidos socialistas, social-democratas, trabalhistas e comunistas. Foi-se evidenciando que os modelos organizacionais e as doutrinas até então adotados já não mais se aplicavam.
Todos tiveram de se reinventar, em meio a uma difícil batalha política e ideológica, provocada tanto pelos efeitos do neoliberalismo quanto pela irrupção de uma extrema-direita interessada em minar as bases da democracia representativa e do pacto social ligado ao Estado de Bem-Estar. Nesse processo de reinvenção, nem todos sobreviveram e os sobreviventes não ficaram incólumes.
Hoje, estamos em um vazio reflexivo: não se sabe bem em que se transformaram os partidos políticos do nosso tempo, nem como evoluirão.
O que se sabe é que eles já não mais cumprem o papel de modeladores e propulsores de ideias. Tornaram-se máquinas pragmáticas, concentradas na acumulação de votos e na conquista/conservação do poder. Não mais fornecem parâmetros para que os cidadãos se organizem e atuem civicamente na vida social. Deixaram de ser educadores. Também não ajudam a que se formem consensos políticos consistentes, substantivos, que revitalizem o pacto social e direcionem os governos, dando a eles, ao mesmo tempo, um sentido estabilizador e produtivo.
Tudo isso aparece no Brasil de forma cabal, como um clarão que permite que se veja o todo. Nossa crise atual, que não é de hoje, tem muito que ver com a extenuação dos partidos, o desaparecimento deles como vetores de educação cívica, formação da cidadania e compreensão da complexidade do mundo.
Um exemplo fácil pode ser encontrado na conduta de Bolsonaro, que se vale da condição pouco orgânica dos partidos para desvalorizá-los e substitui-los por agregações parlamentares eventuais, que lhe dariam estabilidade, e por agitações conspiratórias nas redes sociais, que lhe dariam interlocução com os cidadãos.
Outro exemplo, mais complexo, está na generalização, entre todos os partidos, do hiperpragmatismo, que despreza a elaboração teórico-doutrinária e concentra todas as energias na disputa eleitoral e em seus arranjos. Trata-se da exacerbação unilateral e impaciente de uma das funções partidárias: a de disputar eleições para acessar o Parlamento e as instâncias de governo no plano federal, estadual e municipal. Ou seja, o foco voltou-se todo para o poder, sem qualquer atenção para com a hegemonia, a capacidade de direção intelectual e moral.
Os cidadãos são assim estimulados a vivenciar a política como luta desencarnada, em que os contendores pouco se diferenciam entre si, igualando-se na apresentação de propostas retóricas, sem substância, que não se acomodam em um programa de governo com caráter pedagógico. São buscados com avidez pelos candidatos, mas não são efetivamente incorporados como atores.
Pode-se ver isso na batalha em torno da filiação de Geraldo Alckmin ao PSB para ser inscrito como vice-presidente na chapa com que Lula concorrerá à Presidência em 2022. A pergunta que lateja é: o que um conservador democrático e bem intencionado como o ex-governador paulista fará em um partido que se proclama socialista? Idoneidades e biografias à parte, trata-se de um enigma que se autoexplica: o eventual ingresso de Alckmin será a expressão confessada da opção do PSB pelo hiperpragmatismo, praga que aflige todos os demais partidos.
Uma chapa Lula-Alckmin contém muitos elementos de avanço e pode ser valiosa como recurso para retirar o País do pântano em que se encontra. Não se trata, portanto, de condenar a articulação, que reflete uma derivação petista rumo ao centro e pode compensar certas limitações do PT, agregando recursos para uma governança equilibrada, caso Lula vença as eleições. A questão aqui é mais de coerência partidária que de cálculo ou opção eleitoral. Seria muito mais “lógico” se Alckmin estivesse a representar seu próprio nicho político e ideológico, encontrando um partido de centro para se filiar.
Alckmin rompeu com o PSDB quando o partido se dobrou aos apetites desmesurados de João Dória, mas nem por nasceu ali um “novo Alckmin”, menos conservador e mais “socialista”. Alckmin nunca foi social-democrata, o que não é demérito algum, diga-se de passagem. Sempre foi um político coerente, fiel a um estilo e a um ideário. Esteve anos filiado ao PSDB, acompanhando os vaivéns do partido, que nasceu com o espírito da social-democracia, mas nunca conseguiu fixar, elaborar e publicizar essa identidade. O PSDB sempre coexistiu com campos doutrinários distantes da social-democracia. Sua evolução foi, aos poucos, deixando pela estrada o legado que dera ao partido uma valiosa marca na origem. Deteriorou, e hoje não há como saber de que modo irá se repor.
Somado à postura autocentrada dos parlamentares, que manuseiam cifras milionárias em benefício próprio, às zonas de miséria explícita, à carência material e à pobreza cívica da população, a todos os desafios estruturais com que o País se defronta, o pragmatismo mal compreendido e sem ponderação dos partidos é um componente que ajuda, de forma decisiva, a que as peças da crise se encaixem. Eles atuam como operadores da reprodução insensata de um estado de coisas (políticas, institucionais) que não permite ao País encontrar soluções para seus problemas mais prementes.
A democracia representativa precisa de partidos políticos. Eles provavelmente não conseguirão mais recuperar os traços ideológicos, políticos e organizacionais que lhes deram lugar estratégico no Estado democrático. Mas não precisam ceder passivamente às inflexões mais perversas da época: podem fazer da reinvenção a que estão obrigados uma ponte para continuarem a operar como personagens estratégicos nas sociedades do século XXI.
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