“Eu queria que meus sentimentos fossem respeitados. Quando eu digo que me apavora São Petersburgo a -10°, estou sendo sincera. É um temor real. Me incomoda que você ache graça disso, que reduza tudo a manha, a faceirice. Já te ocorreu que talvez não seja?” Aos poucos ele ia entendendo como ela funcionava. À medida que a comunhão de almas crescia, mais ela emitia alertas. À sua maneira, ela assinalava as zonas a serem evitadas, as águas rasas em que o fundo do navio podia sair avariado do atrito com os arrecifes. Você já falou uma vez que gostava de ser levada a sério, ele pensou em dizer, mas não precisava. Os dois gostavam de entabular cenários, de antecipar situações reais de uma vida a dois – como se fosse irrelevante que a soma das idades já tivesse deixado há muito um século para trás. “O que eu quis dizer é que ninguém leva mais sobretudos na bagagem. As roupas térmicas coladas à pele resolvem bem o dilema. E depois, abaixo de zero tudo é mais ou menos parecido. É como se – 10° e – 30° não fizessem tanta diferença.”
Então ela fulminou com o inesperado. “Você vive dizendo que seu casamento nasceu falimentar. Diz que sua mulher já está mentalmente preparada para um desfecho. E quando ele vai acontecer, que mal pergunte? Você vai esperar o quê para assinar o óbito?” Visivelmente, ele não tinha resposta. Sem cuidado, cedeu ao cinismo. “Se fosse tão fácil, não teria graça”, mas se arrependeu de soar leviano. Para ela, ficava claro que haveria ruptura, mas que não seria um experimento controlado. Sendo assim, levaria meses de avanços e recuos. Organizar a transição, não estava ao alcance dele. Ele resolveu complementar, mas não inovou. “Isso não é uma ciência exata, minha querida.” Sim, o desfecho seria intempestivo, quando tivesse que ser. Não seria uma implosão metódica com limitação de estragos. Seria uma detonação brusca, provavelmente dolorosa. Tocaria a ela um ônus desproporcional. “Time will tell”, finalizou. Quem tinha, afinal, o papel bom naquele enredo? Talvez ninguém. Ou ambos ganhavam ou ambos perdiam! Ela teve a boa ideia de dizer que aceitaria uma sobremesa.
Então decidiram levar o barco para águas profundas, logo mais seguras. A índole dela era de celebração, apesar de tudo. “Eu duvidava que um dia pudesse ficar tão à vontade contigo. Tinha medo de falar bobagem, de não estar à altura, de me sentir sob julgamento. Passou!” Ele retribuiu. “Gosto de estar com você. Meus mundos ficaram para trás… nada nem ninguém pede uma revisita. Você pra mim conta demais.” Ultimamente, vinham respeitando um silêncio depois das frases fortes. Por meio minuto, o que podia ser muito tempo, trocavam olhares, assentiam, tentavam se tocar, mas olhavam em volta. Quem os visse ali e acompanhasse o não verbal e a coreografia, veria que os dois prezavam a relação. Que tomavam cuidados para que as zonas cinzentas não perdurassem. Para que as dúvidas fossem dirimidas com perguntas que denotassem atenção. Ela pedia notícias da saúde do pai dele e do cachorro. Ele perguntava a ela sobre o trabalho, sobre como iam as coisas no escritório de advocacia novo. “Vão bem! Nada que você já não saiba.”
Então caminharam lentamente para a garagem. Os carros estavam parados quase lado a lado. Estavam a 4 grandes rampas do térreo. Ainda que com algum desequilíbrio de dosagens, eles também tinham 4 níveis subterrâneos que temiam em igual medida. Primeiro, a decepção das revelações tardias, cujo tempo de maturação houvesse caducado. Uma janela de verdade perdida há dois meses, invalidava todos os ganhos do período. “Você sabia e não me disse”, ele já tivera que escutar. Em segundo, os ensaios de ruptura intempestivas por coisas menores. De uma parte e de outra, também tinha acontecido. O horror à manipulação – o horror dos horrores -, e a cautela em não ferir os sentimentos um do outro. Mas não pensaram em nada disso enquanto subiram as rampas a caminho da luz do entardecer. No asfalto, rodaram lado a lado até o segundo semáforo. Foi quando começou a chover e os limpadores de para-brisas tiveram que ser acionados a toda velocidade. Então ela virou à esquerda enquanto ele desceu em direção à grande avenida. Eram amantes e também namorados – o que quer que isso significasse sob a tempestade.
Ora, um dia saberiam. Naquele dia, nada indicava que pudesse haver uma ruptura possível.
Bravo, Fernando!!👏👏👏
Descrição fiel e verdadeira de um cenário que se mostra cada vez mais presente nas – sempre difíceis – relações de um casal de meia idade.
É em parte lamentável, mas é a grande realidade cotidiana.
Abraço e saúde!