O diabo.

 

—Meu neto, você acredita no Diabo?

Meu avô Ribeiro fez-me essa estranha pergunta quando eu, adolescente, passava as férias do meio do ano em sua fazenda Poderosa, perto de Solânea, no brejo paraibano.

Pai da minha mãe, ele chamava-se Severino da Costa Ribeiro, conhecido em Campina Grande, sem que ele soubesse, como o Brahma-Quente. Comerciante típico, nato e assumido, seu negócio era comprar, vender, ganhar e perder. E isso era, também, seu lazer, sua vida, seu jogo. Vivia sete anos de vacas gordas seguidos por outro tanto de vacas esquálidas, esqueléticas.

Nessa ocasião os negócios estavam indo muito bem, ele satisfeito com suas plantações de agave e as exportações do sisal pela Sanbra e pela Anderson Clayton. Anos depois, o negócio deu para trás: apareceram as fibras sintéticas, o Nylon, o Rayon, mas isso é outra história.

Voltando à fazenda: final da tarde, sentados em cadeiras de balanço Gerdau, no ventilado alpendre da casa grande, vendo o sol se pôr atrás do Curimataú, comentei, entusiasmado, as extensas plantações de agave sisalana, como vô Ribeiro me ensinara, e sobre o funcionamento da usina de beneficiamento do sisal, que a gente via lá do outro lado, com suas máquinas desfibradoras movidas a roldanas tocadas por uma grande máquina a vapor.

Ele riu, de certa forma orgulhoso dos meus elogios, mas logo fechou a cara e fez-me, de chofre, a intrigante questão: 

—Meu neto, você acredita no Diabo? 

Claro que fiquei meio surpreso com aquela indagação incômoda e fora de tom. Mesmo assim, respondi:

—Sei não. Tenho dúvidas.

—Eu também. 

—Como? O senhor não tem certeza?

—Pois é. Perdi o prumo desde que meu Omega parou e me convenci da existência de muitas filosofias a se contradizerem em suas definições e teoremas mais vulgares; então deixei que a fé ficasse com astrólogos, cartomantes, getulistas, hidroestetesistas e outros iguais. A horrível mania da certeza, de que falava Renan, já a tive; hoje, porém, não mais. De modo que posso bem à vontade contar-lhe o que me aconteceu num conflito que tive com o Tinhoso há muitos anos.

—Pois me conte!

—Tudo começou quando pedi ao seu tio, Guarda-Roupa, meu grande amigo, tropeiro desde antigamente, que me ajudasse numa empreitada que precisava dar cumprimento para escapar do pessoal da Receita. Tudo correu bem e deu certo até que um par de escribas, que não tinha mais o que fazer, resolveu botar no papel essa história que armei para defender meu patrimônio das sanhas do Governo. Pois bem, certo dia estava eu no bem bom quando soube que um parecer de famoso pericial em Economia, pelo sobrenome um samango português muito metido, havia chegado ao conhecimento dos homens e que os fiscais haviam concluído que eu formara uma quadrilha à qual encomendara diversos atos ilícitos, especificamente o de continuada sonegação fiscal.  Por isso, dizia o tal perito, eu estava sujeito à maior das penas convencionais por ter sido o mandante do crime e que somente o fato de ser réu primário evitaria constrangimento maior. Se dizendo bonzinho, concluía, de forma categórica, que este seu avô poderia cumprir a sentença, a ser prolatada em processo, em regime domiciliar com medidas cautelares. O safado do Zé Tostes, chefe da Coletoria, aproveitou-se para determinar que minha única alternativa seria pagar, em três dias, uma multa altíssima, estipulada por eles não se sabe como. Não tive saída: liquidei a tal pena, com juros e correção. 

Suspirou ainda agastado e continuou.

—Entrei em um aborrecimento mortal. Um tédio imenso invadiu meu íntimo enquanto a minha conta bancária descia ladeira de costas. Sentia-me vazio. Diante do que via no mundo, não mais respondia. Era como um toco de pau oco, inerte. Refletia acabrunhado: os desgostos da minha vida, meus excessos, minhas desilusões, estavam me levando a uma condição de desespero, de mau-humor, de enfado, para a qual, em vão, procurava alívio. Se é fato que a Vida não mais me agradava, a Morte não me atraía. O que eu desejava era outra vida. Queria correr mundo, navegar, descobrir se as belezas que o tempo e o sofrimento dos homens acumularam sobre a terra acordavam em mim o sentimento necessário para a Vida, para o sabor do viver. Mas, pensava: isso só seria possível se eu tivesse muito dinheiro. Mas, dinheiro, como arranjar? Pensei meios e modos: roubos, furtos, assassinatos, estelionatos, aparentei-me a Raskólnikoff. Jeito, porém, não havia, e energia não me sobrava. Lembrei-me do Diabo. E se o Demo topasse comprar-me a alma? Eram tantas as histórias faústicas que, mesmo homem cético e sertanejo, comecei a pensar em apelar para o Rabudo. Nisso, bateram na porta. Abri. 

— Quem era? 

 —O Pelintra. 

— Como o reconheceu? 

—Era um cavalheiro como outro qualquer, sem cavanhaque, sem pontas, sem rabo tripartido ou patas de bode, nenhum atributo satânico. Entrou em minha casa como um velho conhecido e tive a impressão de que eu apreciava muito bem aquele inesperado visitante. Sem cerimônia, sentou-se perto da rede e foi perguntando: “Que merda é essa?” Retorqui: ” A palavra vai bem, mas falta-me um milhão.” Disse-lhe sem refletir e ele, fora de espanto, levantou-se, deu uma volta pela sala; parou e olhou em um porta-retratos de pau-rosa. “É tua noiva?” “Não. É uma foto que encontrei na calçada. Simpatizei e…” “Queres vê-la já?” “Quero”. Logo, entre nós dois, sentou-se a mulher do retrato. Enquanto continuávamos a conversar veio-me a certeza de que estava falando com Mefistófeles. A mulher foi-se e ele inquiriu: “Que queres de mim?” “Vender-te minha alma”, disse-lhe sem pestanejar. 

O Casquento — Quanto queres por ela? — Cuspiu na minha cara.

Eu — Quinhentos contos. 

O Maligno — Não queres pouco. — E deu-me um cocorote.

Eu — Achas caro? 

Satã — Certamente. — E sapecou-me um croque.

Eu — Aceito trezentos. 

O Demo — Ora! ora! — Plantou-me um currulepe.

Eu — Então, quanto dás? 

O Trevoso — Safado, não boto preço. Agora, são tantas almas que me chegam de graça que não vale a pena comprá-las. — E veio um forte cascudo.

Eu — Então não dás nada? 

Lúcifer — Miserável! Vou falar de coração aberto, simpatizo muito com você, por isso vou pagar alguma coisa. — Um bofete.

Eu — Quanto? 

O Diabo —Vinte mil-réis? — Chuva de tapas.

— O senhor aceitou? 

Meu avô quedou-se um instante olhando para o nada. Afinal, respondeu: 

— Aceitei! …e hoje temos esta bela fazenda.

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11 de março de 2022