Frederico Toscano

“A Primavera”, quadro do pintor renascentista Sandro Botticelli (1445-1510), pintado em 1482, retrata figuras mitológicas num jardim. Desde 1919 faz parte da coleção da Galeria Uffizi em Florença, na Itália.

Sob vários aspectos a vida de Antonio Lucio Vivaldi (1678-1741) foi tão intensa quanto sua música. Filho de violinista, seguiu os passos do pai enquanto estudava para o sacerdócio – passando a ser conhecido futuramente como “Padre Ruivo” (Prete Rosso, em italiano), devido à cor dos seus cabelos. Em 1703 obteve o posto de professor no Pio Ospedale della Pietà, instituição veneziana de caridade para moças órfãs, mas talentosas, onde ensinou e conquistou fama internacional para si mesmo e suas alunas.

Os concertos no Ospedale atraíam um público numeroso. Os viajantes descreviam esses eventos com entusiasmo, quase sempre trazendo curiosidades divertidas ante o espetáculo invulgar de um coro e uma orquestra constituída exclusivamente de adolescentes do sexo feminino. Um nobre francês, Charles de Brosses, conde de Tournay (1709-1777), em visita à Itália, descreveu dessa forma os concertos de Veneza em carta a um amigo de Dijon:

Música insuperável é aqui nos asilos. Existem quatro, e todos eles constituídos por moças bastardas ou órfãs ou cujos pais não têm possibilidade de criá-las. Elas são, portanto, educadas à custa do erário público e treinadas exclusivamente para serem músicas exímias. E, em virtude disso, cantam como anjos e tocam violino, flauta, órgão, violoncelo, fagote. Em suma, não há instrumento, por maior que seja, que as assuste. Vivem enclausuradas como freiras. São elas as únicas executantes; em cada concerto tocam cerca de quarenta moças. E juro a vocês que nada é tão encantador como ver uma freira jovem e bonita, de hábito branco, com um raminho de flores de romã atrás da orelha, dirigindo a orquestra e marcando o compasso com a maior graça e a maior precisão que se pode imaginar. […] O asilo que vou mais vezes é o da Pietà, pois é lá que os concertos são mais agradáveis. Este asilo é também o primeiro na perfeição das sinfonias. E que impecável execução! [Grout & Palisca: A History of Western Music, 2014]

De Brosses viu Vivaldi em Veneza no fim da vida e registrou: “Ouvi-o vangloriar-se de compor um concerto com todas as partes mais rápido do que um copista poderia copiá-lo! […] É um vecchio com uma prodigiosa fúria de compor…” Digamos que esta furia (a palavra é mais expressiva em italiano), Vivaldi a estampava em toda a sua pessoa: em seus olhos, em seus gestos, em seu nariz fantástico… – uma caricatura do compositor feita por Pier Leone Ghezzi (1674-1755) é mais expressiva do que uma biografia. Nessa figura de Ghezzi tudo é legível ao natural: aquela vivacidade imperiosa, a inteligência, algo de agitado, mas também, provavelmente, uma tenacidade oculta, uma determinação inflexível.

Vivaldi, nervoso e sem sombra de dúvida emotivo, provavelmente sofria de uma angustia crônica – sua asma, sua falta de ar, sua strettezza di petto, como ele dizia, são doenças de ansiosos. Tranquilizava-se levando permanentemente consigo uma espécie de séquito, composto de quatro ou cinco pessoas que lhe eram indispensáveis e que criavam à sua volta um clima familiar e reconfortante. Essa entourage exclusivamente feminina deu muito que falar… Convenhamos que a visão deste estranho padre ruivo cercado de saias devia oferecer, mesmo na Veneza do século XVIII, um espetáculo insólito.

Dessas pupilas, Vivaldi se ligou especialmente à cantora Anna Giraud (1710-1748), que atuou em várias de suas óperas. Vivaldi a chamava de “Annina”. Em 1737, durante uma discussão pública sobre contratos, os rumores sobre esse relacionamento, e a recusa de Vivaldi em celebrar missas (devido à asma), levaram ao seu banimento de Ferrara ao passar por lá, por ordem do poderoso cardeal Tommaso Ruffo (1663-1753). Em seguida, visitou cidades italianas e estrangeiras, não só como violinista, mas também como empresário na produção de suas óperas – contratando cantores, dirigindo ensaios, controlando receitas.

Em 1740, Vivaldi foi embora de Veneza, ao que parece sem esperar regressar, pois vendeu tudo (inclusive seus manuscritos) e dirigiu-se a Viena, onde morreu um ano mais tarde aos 63 anos, pobre e só – diz-se que a sua excessiva prodigalidade o arruinou. Nos seus últimos anos, este músico genial, célebre em toda a Europa, caíra subitamente no mais completo esquecimento. Parece que Vivaldi foi, na verdade, exilado pelo governo da República de Veneza, por motivos obscuros, talvez políticos. Essa versão explica, em todo caso, várias coisas: certos textos e cartas escritos por Vivaldi no fim de sua vida, em que se defende de ataques e calúnias, sua miséria em Viena, a ausência de qualquer protocolo e cerimonia no seu enterro, e o silencio que cerca sua morte.

Um dos compositores mais apreciados pelo público de hoje ainda estava, até o fim da década de 1940, praticamente mergulhado no abandono. Só em 1927 a aquisição pela Biblioteca Nacional de Turim da coleção de manuscritos de Vivaldi que pertencia ao conde Giacomo Durazzo (1717-1794), embaixador da República de Gênova em Veneza entre 1764 e 1784, permitiu ao violinista francês Marc Pincherle iniciar a primeira pesquisa sistemática sobre a obra de Vivaldi. Mas o Fascismo e, em seguida, a guerra criaram dificuldades a esse trabalho. Só em 1948 Pincherle pôde publicar Antonio Vivaldi et la musique instrumentale, a que dedicara a vida inteira. Seus estudos foram completados por Mario Rinaldi, Antonio Fanna e, principalmente, pelo dinamarquês Peter Ryom, que, em 1974, publicou o mais atualizado catálogo da obra de Vivaldi – o RV que vem diante do número de cada composição é a abreviatura de Ryom Verzeichnis, ou Catálogo Ryom.

A impetuosidade, aquela fúria, como disse De Brosses, que caracterizavam Vivaldi, também estão presentes na obra do compositor. A facilidade com que escrevia música era desconcertante. Ele transbordava de ideias musicais. Sua criatividade não tinha limites. Há uma famosa história de que ele teria abandonado o altar durante a celebração de uma missa para anotar, na sacristia da igreja, uma bela melodia que lhe ocorrera. Na margem do manuscrito de uma de suas 94 óperas (47 conhecidas e outras tantas perdidas), há uma anotação de Vivaldi segundo a qual a ópera foi composta em apenas cinco dias – um recorde na história da música. Certa vez, compôs 10 concertos em três dias.

Encarada dentro dos padrões modernos, a dimensão da obra de Vivaldi deixa abismado quem se anima a fazer seu inventário. São cerca de 500 concertos, e entre eles estão quatro celebridades universais: As quatro estações (ou Le quattro stagioni, em italiano), compostos em 1723 e parte de uma série de 12 obras publicada em Amsterdã em 1725, intitulada Il cimento dell’armonia e dell’inventione (O confronto entre a harmonia e a invenção). Ao contrário da maioria dos concertos de Vivaldi, esses quatro têm um programa claro para conduzir o ouvinte: cada um vinha acompanhado por um soneto ilustrativo, impresso na parte do primeiro violino, sobre o tema da respectiva estação. Não se sabe a origem ou autoria desses poemas, mas especula-se que o próprio Vivaldi os tenha escrito.

As quatro estações estão entre as obras mais gravadas de toda a história do disco e existem sob todas as formas de arranjos e adaptações. Tornaram-se um patrimônio da nossa cultura. Mesmo quem não conhece música clássica certamente as ouviu. Já em seu tempo, estes concertos tinham imensa popularidade: a peça estrangeira mais executada nos Concerts Spirituels, tradicionais séries de concertos de alto nível que aconteciam em Paris, era tão apreciada pelo público francês que, em 1766, o compositor Michel Corrette (1707-1795) utilizou a música da Primavera no seu grandioso salmo Laudate Dominum. De 1950 para cá, a obra de Vivaldi recuperou integralmente a reputação que tinha na época em que foi composta.

O primeiro concerto de As quatro estações, em Mi maior (RV 269), intitulado A Primavera, é o mais famoso do conjunto, já tendo até sido utilizado em comercial de sabonetes na década de 80. No soneto que acompanha a obra, anuncia-se a chegada da primavera, com a saudação festiva dos pássaros e o murmúrio das fontes e das brisas suaves:

O sol abrasador atinge os camponeses no segundo concerto, em Sol menor (RV 315), chamado de O Verão, mas uma tempestade se anuncia, eclodindo no terceiro movimento numa furiosa chuva de granizo acompanhada pelo crepitar de uma rápida passagem ornamental na orquestra e no solo:

O Outono, terceiro concerto da série em Fá maior (RV 293), abre com uma dança camponesa para celebrar a colheita e conclui com uma caça (completa, com “trompas, armas e cães”), que culmina na morte de um veado selvagem:

Finalmente, o Inverno, quatro e último concerto das Estações, em Fá menor (RV 297), descreve primeiro o frio e o bater de dentes (vídeo a seguir), depois momentos calmos junto ao fogo e, enfim, a alegria temerária de deslizar no gelo quebradiço e ouvir o assobio dos ventos invernais:

Na verdade, cada compasso fala por si, tornando praticamente desnecessários os sonetos explicativos. A sequência dos eventos está perfeitamente clara, um quadro fresco como uma pintura. Tudo é imediatamente percebido, sem ser, no entanto, ingênuo, pois esses quatro concertos, com sua tradicional sucessão de movimentos rápido-lento-rápido, trazem muitas surpresas, agradando inclusive o conhecedor experiente por sua riqueza formal que nada tem de esquemática, por expressivas irregularidades, com mudanças de tempos e de ritmos.

Com cerca de 500 gravações realizadas, As quatro estações representam o epicentro do gosto do grande público: são doces, melodicamente irresistíveis e descomplicadas para se apreciar. O passar dos seus quase 300 anos de composição em nada as afetou, e, apesar de ouvidas com frequência nas salas de concerto e por meio de gravações, elas em nada perderam seu frescor original. É como se tivessem sido escritas ontem. A escala das gravações vai desde a versão com grande orquestra do regente austríaco Herbert von Karajan (1908-1989) e a Filarmônica de Berlim até os 16 instrumentos espartanos na interpretação do Drottningholm Baroque Ensemble da Suécia. A primeira a vender maciçamente foi a gravação de 1955, com o grupo I Musici, de Roma, com Felix Ayo como solista, tão bem sucedida que teve que ser refeita quatro anos depois em estéreo – e teve 9,5 milhões de discos vendidos.

“Natureza e arte combinaram-se antes do que se possa imaginar”, como teria desejado o escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Em As quatro estações, sentimos a furia de Vivaldi, mas essa fúria era pura paixão, paixão pela arte. Apesar de sua saúde frágil, o incansável Padre Ruivo passou 40 anos de sua vida como professor de um orfanato recebendo um salário que não ia além daquele de um principiante, evidentemente por amor desinteressado à arte.

Em muitos concertos, Vivaldi também declarou seu amor à natureza, homenageando-a ao tentar reproduzir o som dos animais, dos rios, das fontes, das brisas. Ele parece sentir uma verdadeira paixão pela tempestade, pelo vento e pela chuva, pelas perturbações atmosféricas que tanto rendem em música. Ele pertence a uma tradição que vai dos naufrágios nas óperas barrocas, às músicas de tempestade em O barbeiro de Sevilha de Gioacchino Rossini (1792-1868), à Sinfonia Pastoral de Ludwig van Beethoven (1770-1827) e à Sinfonia Alpina de Richard Strauss (1864-1949).

A qualidade da música de Vivaldi – temas concisos, clareza da forma, vigor rítmico, textura homofônica, frases equilibradas, diálogo dramático entre solista e conjunto – é de tal forma incontestável e nobre que influenciou diversos compositores, entre eles Johann Sebastian Bach (1685-1750), que estudou e transcreveu vários dos seus concertos para teclado. Em toda a sua obra, uma imprevisível fantasia, uma vitalidade eufórica conferem ao gênio de Vivaldi caráter universal que o impedirá sempre de envelhecer.