Clara Nunes, Vinicius e Toquinho.

 

Em 1973, faltava mais de uma década para o regime militar sair de cena no Brasil. O General Médici ainda dava as cartas, as últimas e duras cartas. Logo seria substituído pelo General Geisel, que indicaria o General João Figueiredo, que, apesar dos pesares, faria entrar no palco a tão desejada democracia; por isso, foi logo avisando, com franca brutalidade: “E quem for contra, eu prendo e arrebento”. Esse obstinado Figueiredo, só lembrando, com seu jeitão de poucos amigos (há sempre um jeitão que se admira) parece até ter rogado uma praga com seu infame trocadilho: “Tancredo ‘never’!”. Praga pesada, pois Tancredo Neves, o paciente articulador mineiro, ganhou, mas não levou, atropelado por uma morte que comoveu o País.

Pois foi em 1973 que o show “Poeta, Moça e Violão” aportou ao Teatro de Santa Isabel, na indômita cidade do Recife. Traduzindo o título, teríamos respectivamente Vinicius de Moraes, Clara Nunes e Toquinho. Todos no auge da carreira, faiscando de lirismo e de encantamento. Um trio fantástico, reunido pela poesia e pela música. Vinicius já de algum tempo vinha aproximando seus dons literários do cancioneiro nacional. Vinha da Bossa Nova e estourava nas paradas com seus sambas afro-brasileiros. Nos palcos, ele sempre erguia e sacolejava seu copo de uísque, bebida que chamava de “o melhor amigo do homem: o cachorro engarrafado”. Claro, não foi diferente num Santa Isabel lotado, com Dom Helder sentado numa das primeiras fileiras. Lirismo e resistência davam-se as mãos num show emocionante e bem pensado. Clara cantava, Toquinho tocava e Vinicius, o poeta, recitava seus poemas, sua imensa poesia. Ah, meus amigos e minhas amigas, isso foi há muito tempo…

Um dos poemas mais aplaudidos foi o longo e expressivo “Pátria Minha”, típico poema para se ler em voz alta, para se explorar suas nuanças líricas e sua ressonância social e política. Que terão pensado os censores de então? Suspeito que houve sorte, suspeito que os próprios censores se deixaram enlevar pelo lirismo inatacável do poema, como se esse lirismo suplantasse o achado político de se escolher justamente tal poema para o roteiro do espetáculo. Às vezes, os “melhores” censores cochilavam; faltava-lhes imaginação, sobrava-lhes uma ignorância naturalmente indiferente…

Num regime, como o militar, para o qual o conceito formal e ideológico de “pátria” é basilar, o poema “Pátria Minha” soava diferente, mas não afrontoso (talvez tenha sido essa a percepção dos censores). De saída, o poema começa por uma negação: “A minha pátria é como se não fosse”, o que é logo atenuado por outro foco: “[…] é íntima / Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo / É minha pátria”. Depois, o eu lírico começa suas revelações e seus sentimentos: chora de saudades da pátria em seu exílio; fala que a pátria é luz, sal, água de suas lágrimas amargas. Na segunda estrofe, em meio a esse transbordamento afetivo, lê-se que há uma “[…] vontade de beijar os olhos de minha pátria”, etc., há uma vontade herética, mas sincera: “[…] Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias / De minha pátria, de minha pátria sem sapatos / E sem meias, pátria minha / Tão pobrinha!”.

Basta, poeta, chega de tanto desabafo e tanta meiguice! Mas o poema não está sequer no meio! Silêncio vibrante na plateia do secular Santa Isabel. A exuberante complexidade do texto é compensada pela entonação expressiva do próprio autor, pelas notas altas de alguns versos! Vinicius passa a dizer que a pátria é algo íntimo que se possui: “um gemido de flor”, “uma fé sem dogma”, “fonte de mel”, “bicho triste”… Dramatiza: quer rever a pátria e se martiriza: “cego, estropiado, surdo e mudo”. Desdiz o próprio hino nacional: “A minha pátria não é florão nem ostenta / Lábaro, não; a minha pátria é desolação / De caminhos, a minha pátria é terra sedenta / E praia branca […]”. Não é a “mais garrida” e “não rima com ‘mãe gentil’”, será antes uma “filha”, “uma ilha de ternura”. E prossegue dizendo, depois de tanto enternecimento, que está “Atento à fome em tuas estranhas / E ao batuque em teu coração”. E finalmente a “chave de ouro”: pede a cotovia que peça ao rouxinol que peça ao sabiá (não por acaso pássaros tão emblemáticos!) que leve à pátria distante um “avigrama”: “Pátria minha, saudades de quem te ama… / Vinicius de Moraes”. O Santa Isabel, inflamado de ardor e lirismo, transborda de aplausos.

O recado estava dado. O verdadeiro patriotismo não precisa estar inscrito em slogans fascistas e militares ou ser ensinado nas escolas, é espontâneo, está dentro de cada um de nós… E os poetas sabem dizê-lo.  Isso foi em 1973. A democracia era um anseio, e os censores, apesar de solícitos e dedicados, deixavam escapar, por entre os dedos, a pólvora doce da poesia.