Em seu colossal “O homem diante da morte”, o historiador francês Philippe Ariès nos recorda como é antigo e praticamente universal o entendimento de que a morte é uma espécie de sono e, por contiguidade, de descanso. Na morte, descansa-se, tal como sugere a famosa inscrição latina “Requiescat in pace” (“Descanse em paz”) tão encontrada nos cemitérios. Descansa-se de quê? Da vida, ora. Das injúrias da velhice e das enfermidades. Logo, a vida mesma é um cansaço. Hamlet não parece dizer outra coisa em seu célebre monólogo: “Morrer — dormir, nada mais; e dizer que pelo sono se findam as dores, como os mil abalos inerentes à carne — é a conclusão que devemos buscar. Morrer — dormir, talvez sonhar, eis o problema […]”. Voltaire teria dito que “Os céus nos deram duas coisas para compensar as inúmeras misérias da vida: a esperança e o sono”. Hoje, como muitos dormem mal, nem o sono nos livra das misérias e do cansaço…
Não parece haver dúvida de que a vida é cansaço, como não parece haver dúvida de que um dia todos nós descansaremos. À parte essa inerência metafísica da morte ao cansaço, há pensadores que, de olho na História e na sociedade atual, não veem outra coisa em nossos dias senão uma “sociedade do cansaço”. É o caso do coreano Byung-Chul Han, filósofo germanizado e autor, dentre outras obras, do conciso ensaio “Sociedade do Cansaço”, em que reflete sobre o tema e do qual aqui nos ocupamos. Como, de uma forma ou de outra, todos nos sentimos cansados, não é de estranhar que o texto, lançado há 21 anos na Alemanha, tenha conquistado o grande público. No Brasil, foi publicado em 2015.
O Ocidente está cansado. Muitos já haviam cantado essa pedra. Freud e alguns iluministas, por exemplo, além de pensadores reconhecidamente pessimistas, como Oswald Spengler, o franco-romeno Cioran e o austríaco Peter Handke, este último Nobel de Literatura de 2019. A nossa sociedade exala cansaço. A pedra de Sísifo (leia-se: o esforço humano), como ilustrou Camus e expressou o mito, é um cansaço que se renova. Mas parece ter sido em Nietzsche que Han foi diretamente se inspirar. Com efeito, como ele mesmo cita, o pensador alemão vai ao ponto: “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo”.
Para o pensador coreano, “A sociedade do século 21 não é mais a sociedade disciplinar [Foucault], mas uma sociedade do desempenho”. De fato, basta olharmos ao redor para vermos como esse “desempenho”, nas grandes empresas e na sociedade em geral, tem exaurido as pessoas, consumindo-lhes a energia vital para fins de mercado. Para Han, não há dúvida: “A sociedade do desempenho produz depressivos e fracassados”, com a depressão sendo “[…] a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo”. A “pressão do desempenho” leva ao esgotamento no universo do trabalho.
O desejado “elemento contemplativo”, que já faltava à sociedade industrial vivida por Nietzsche, faz o nosso autor defender uma “atenção profunda”, que a cultura pressupõe para as suas maiores realizações. Portanto, o que o autor de “Assim falava Zaratustra” escreveu continua valendo: “Aos ativos falta usualmente a atividade superior […] eles rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica”.
Reunindo e debatendo reflexões de autores tão diversos como Heidegger, Hannah Arendt, Baudrillard, Agamben, Freud e Peter Handke, Han toca insistentemente na tecla da negatividade existencial. Não por acaso, um dos capítulos de seu ensaio trata justamente de “Bartleby, o escrivão”, a obra de Herman Melville cujo personagem principal faz da inércia uma recusa radical. Recusa aparentemente simplória e sem clara justificativa, na qual gravita a enfermidade social de todo um modo de vida, de uma América moldada por aquele espírito burocrático tão bem analisado por Max Weber. Para Han, “Bartleby” também é uma “história do esgotamento”.
Quanto ao nosso cansaço, ao cansaço do século 21, o filósofo coreano vai encontrar suas raízes no hipercapitalismo contemporâneo, no qual “Já não existe nenhum âmbito da vida que consiga se eximir da degradação provocada pelo comércio. O hipercapitalismo transforma todas as relações humanas em relações comerciais […] Vivemos numa loja mercantil transparente, onde nós próprios, enquanto clientes transparentes, somos supervisionados e governados […] Já é hora de transformar essa casa mercantil novamente numa moradia, numa casa de festas, onde valha mesmo a pena viver”. Estudioso de Martin Heidegger, em quem doutorou-se, Han não só nos provoca, ao longo de seu ensaio, com uma ética do cuidado como nos deixa a expectativa de que é possível essa “morada” (termo tão caro ao filósofo alemão) ser de fato o lugar da dignidade humana.
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