Não sei de outros fundadores de religião que tenham tocado na questão da fome e do sustento como fez Cristo na única oração que ensinou. Com todas as letras, pediu ao Pai “o pão nosso de cada dia”.  A humanidade foge da fome como o diabo foge da cruz! Mas nessa fuga, grandes e históricas fomes, impostas ou naturais, já levaram inumeráveis vidas. Toda terra prometida oferece uma exuberância alimentar: não há Canaã sem leite e mel, tal é o imaginário que tem inequívoca origem em nossa natureza biológica. 

Um fenômeno assim não passaria despercebido a romancistas e poetas. Em prefácio a seu clássico “Geografia da fome”, Josué de Castro nos lembra os chamados “romancistas da fome”: um Knut Samson, um Panait Istrati, um Alexander Neverov, um George Fink, um John Steinbeck. Dentre os poetas, basta citarmos o exemplo emblemático de Schiller, para quem “a fome e o amor governam o mundo”, o que Freud metabolizou como uma das fontes de inspiração para a psicanálise. Na natureza, por sua vez, a fome é o próprio acicate da existência, e, para resolvê-la, ou seja, para obterem a energia necessária ao próprio sustento, os animais em geral gastam um bom tempo de suas vidas.

Esquecemos da fome porque comemos; na maioria das vezes, sequer somos tocados por sua literal acidez. Ir ao supermercado comprar mantimentos dá trabalho e leva um certo tempo, mas ir à caça ou à pesca seria muito mais desgastante e demorado, para não dizer arriscado e perigoso. A fome, quem não sabe?, associa-se à alegria de comer. À visão de um prato que matará a nossa fome, dilatamos a pupila, salivamos e, menos notado talvez, chegamos a sorrir. A antropologia aqui, escusado dizer, entre o cru e o cozido, teria deliciosas informações para degustarmos com ou sem a fome e a sede do exótico… Ao pensar nos rituais e costumes humanos, não resisto a mencionar que tive uma vira-lata caramelo para a qual a hora de comer tinha uma invariável liturgia: ia até os grãos de ração, pinçava um deles e, por coisa de um minuto, divertia-se com esse grão, jogando-o para o alto e, alternadamente, o apanhando, até que de fato se dedicava inteiramente à sua refeição. A sua feliz gratidão tinha algo de lúdico e de humano.

No século passado, um brasileiro ilustre pôs o dedo na ferida da fome: o acima citado Josué de Castro. Uma ferida que só cicatriza se o “remédio” for constante, regular, socialmente justo e bem distribuído. Em seu pioneiro “Geografia da fome”, o cientista pernambucano demonstrou que a fome no mundo é uma questão política. Dito assim, parece simples e óbvio, mas não é… O próprio Castro, ao escrever seu livro, chocava-se com o contraste entre a importância do assunto e os então escassos estudos existentes. Num século como o passado, em que a reinvindicação a direitos se tornou uma bandeira universal e plenamente hasteada, Castro abriu nossos olhos e nos fez ver que “o primeiro direito do Homem é não passar fome”…

Agora, nos dias sombrios que correm, a fome está de volta ao Brasil. É mais uma lástima de um quadriênio de horrores. Segundo o portal G1, o número de brasileiros sem ter o que comer quase dobrou em dois anos de pandemia. Uma recente pesquisa informa que são 33 milhões os brasileiros que passam fome. A tristeza dos números é tanto mais dramática quanto se sabe que o Brasil é um grande exportador de alimentos… Na recente Cúpula das Américas, Bolsonaro gabou-se de sermos um celeiro para o mundo, sem naturalmente mencionar que não o somos para o próprio Brasil. A volta do País ao chamado “mapa da fome” é mais um escândalo que não deve ser naturalizado ou silenciado. Não basta haver pobres, é preciso torturá-los no círculo infernal da fome.

Um detalhe do famoso livro de Josué de Castro ilustra a ignomínia. Seu subtítulo: “o dilema do brasileiro: pão ou aço”, que alude ao contexto econômico da época, vale atualmente por uma metáfora das invertidas prioridades do período Bolsonaro, pois é evidente que o “pão” está fora da agenda do governo e que o “aço” das armas e da violência é uma sinistra inspiração. Para o governo que aí está, não há dilema, há, sim, uma opção clara pelo aço (aí incluído o “vil metal”). O resultado não podia ser diferente: mais fome, mais miséria, nenhum pão em cada dia.