Morte e vida – Gustav Klimt.

 

Em seu clássico e enciclopédico livro “O homem diante da morte”, Philippe Ariès observa que “O repouso é, ao mesmo tempo, a imagem mais antiga, mais popular e mais constante do Além. Essa imagem ainda não desapareceu, apesar da concorrência de outros tipos de representação”. Tal repouso, por contiguidade, associa-se ao sono. “Acreditava-se que os mortos dormiam”, diz o historiador. O Hades, os infernos de Virgílio, as palavras de São Paulo aos fiéis de Corinto, tudo testemunha que a morte é um sono e que, no caso dos cristãos, um sono do qual se pode despertar durante a ressurreição. 

Em seu livro “Libertinagem” (para muitos uma de suas melhores obras), Manuel Bandeira, no poema “Profundamente”, entrelaçando memória, infância e morte, três grandes veios temáticos de sua obra poética, retoma o sentido universal da morte como um sono. Nada até aqui de extraordinário, se considerarmos, numa leitura rápida, apenas a visão convencional e histórica: os mortos dormem. A relevância do poema vem de sua forma e do ponto de vista com que o eu lírico vive ou revive a cena evocada do universo da infância. Noutras palavras, “Profundamente” é um emblemático exemplo de como Bandeira reelabora um tema antigo numa forma impecavelmente moderna.

Dividido em duas partes, o poema, logo no primeiro verso, não só apresenta o seu caráter dominantemente narrativo como nos leva a um passado que parece próximo: “Quando ontem adormeci”… Esse “ontem” foi uma “noite de São João”, a seguir sumariamente descrita. Mas quem adormeceu? Um menino. Esse menino, transposto no tempo pela narração adulta, desperta no meio da noite, já agora tranquila e silenciosa, e inquietamente se pergunta: “Onde estavam os que há pouco / Dançavam / Cantavam / E riam / Ao pé das fogueiras acesas?”. O próprio menino parece responder a si mesmo “— Estavam todos dormindo / Estavam todos deitados / Dormindo / Profundamente”. Até aí, a realidade, a pura realidade evocada com síntese e lirismo, trazendo-nos não só imagens visuais (sic) como a grande antítese das referências sonoras que se contrapõem ao silêncio. O “alumbramento” aqui é um espanto diante desse silêncio em que toda a realidade parece transfigurada. Sem som e, portanto, sem palavras, o menino pode constatar quão contingenciais são as circunstâncias humanas. Os felizes atores da festa junina, ruidosos e “verticais”, agora estão mudos e “deitados”, silentes em sua “enigmática” horizontalidade.

A segunda parte, o narrador inicia nos explicando o que de elíptico havia nas primeiras estrofes: “Quando eu tinha seis anos / Não pude ver o fim da festa de São João / Porque adormeci”. E a seguir, tal como ocorrera no São João da infância, nos diz que já não ouve mais as vozes daquele tempo. Nesse momento, sim, ficamos sabendo que o eu lírico, numa inflexão que une o presente ao passado, está nos falando da saudade e da ausência de familiares e entes queridos: “Minha avó / Meu avô / Totônio Rodrigues / Tomásia / Rosa / Onde estão todos eles?”. (Observe-se, de passagem, a forma vertical da disposição dos nomes das pessoas evocadas, cada um deles merecendo figurar sozinho em cada verso, em contraste com a horizontalidade do descanso da morte.) Terminasse aí o texto, ainda não teríamos a grandeza lírica que Bandeira imprime ao seu poema. Mas, ao final, num paralelismo que não deixa de ser, a um só tempo, uma espécie de rima e chave de ouro, a aproximar tempos distantes (o da infância e o da maturidade), o eu lírico responde consolador: “— Estão todos dormindo / Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente”.

Bandeira não diz, mas podemos suspeitar que, ao despertar no meio da noite silenciosa, quando todos já dormiam, o menino tenha sentido e calado um certo sentimento de morte e de abandono. O mesmo sentimento que agudiza a nostalgia do poeta maduro e que sabe se consolar a si mesmo com uma crença que, conforme Ariès, é tão antiga quanto universal. A morte, assim, assume um caráter transitório e menos injurioso. No mais, como consigna o texto, as pessoas não apenas dormem, estão deitadas, repousam, como se ainda participassem da própria vida, como se fossem ressuscitar.

Nessa segunda parte, a narratividade do poema, com a mudança de foco da criança para o adulto, deixa implícito o protagonismo do tempo. Adulto e menino, um e outro, parecem mutuamente se completar em função da estrutura poética, pois, não obstante possuir a matéria bruta da emoção, a criança enquanto criança não pode escrever o poema. A matéria-prima da infância, tão do gosto de Bandeira, exige, por assim dizer, um desempenho cênico que só as palavras do poeta criam. Como em outras obras do autor, a exemplo de “Velha chácara”, “o menino ainda existe” enquanto a realidade se degrada em mudança ou irrelevância, à exceção de ser apenas um índice desencadeador da memória.

Com qualquer outro título, o poema já seria uma obra-prima. Mas o escolhido pelo poeta, convenhamos, lhe dá um sabor especial. Penso que Bandeira buscou o menos convencional, o mais oblíquo e, por assim dizer, o mais espesso título. Afastou os substantivos, que seriam inúmeros e tradicionais, e ficou com o advérbio “profundamente”. Decerto para nos lembrar que há uma densidade existencial e uma verticalidade temporal. Incluindo o próprio título, o advérbio é três vezes mencionado. Acredito que, além da densidade que o termo transmite, “profundamente”, nesse contexto específico, quer dizer outra coisa, ou melhor, mais alguma coisa. Talvez queira dizer “insondavelmente”, tanto para o menino que se depara com a noite silenciosa quanto para o adulto que lembra os seus mortos. A estrutura paralelística do poema propõe-se como um espelho distorcido. Não por acaso, o termo conclui a primeira parte e, num espelhamento, repete-se no verso final. Tal é a insondabilidade compartilhada por ambos os pontos de vista. Essa insondabilidade, por natureza, nada responde, mas chama nossa empatia e acende a dimensão metafísica do poema. Não responder é sua profundidade. “Profundamente”, em tal contexto, é mais que um mero advérbio, é o espaçotempo (um cronótopo) onde a imaginação do poeta ancora a carência do seu desejo e a incompletude da humana contingência, sem embargo de ser um inquietante alumbramento diante da morte.