“Nazi Vision of Greatness,” by Richard Spitz.

 

A nossa democracia encontra-se ante um dilema eleitoral, após recentes experiências de governantes com vieses iliberais e cleptocráticos. Às vésperas de uma votação decisiva, destacam-se nas pesquisas dois candidatos portadores de traços carismáticos, cujos alguns dos seus devotados sectários que recusam o diálogo e preferem se valer do insulto ou, não raro, da agressão física aos seus oponentes. Propostas de governos não são tecnicamente debatidas, nem há discussão racional sobre os futuros desejados para a sociedade.

Este brevíssimo ensaio tem por objetivo contribuir para uma melhor compreensão de uma campanha política com eleitores polarizados e beligerantes. As sucintas anotações históricas, a seguir, referem-se à transição de um Estado democrático de direito para um regime autoritário após eleições livres e sob a garantia de dispositivos constitucionais, na culta Alemanha da primeira metade do século passado.

Logo após o término da primeira grande guerra, os famélicos soldados alemães vindos das frentes de combate encontram uma sociedade desolada e um país em desordem institucional. Essa disforia coletiva resultava de múltiplas adversidades: a debacle militar, a perda de territórios e reparações financeira estabelecidas pelo Acordo de Versailles, o ressentimento com os vitoriosos, o desalento cívico e a crise sociopolítica. Para recuperar a economia e combater a hiperinflação foi criada uma nova moeda e posta em prática uma austera política fiscal. Esse ajuste, entretanto, diminuiu a oferta de emprego e ampliou a pobreza no país. Em seguida ao crash da bolsa de valores americana os transtornos econômicos voltam a recrudescer no início dos anos 30.

Para além do esgotamento econômico, o país mergulha na violência política. São registrados inúmeros feridos e mortos em confrontos de ruas entre militantes partidários. O tecido social esgarçado e a inoperância das normas de convivência pacífica faziam a Alemanha parecer o pior dos mundos. Perante as disfuncionais instituições, a crença no direito formal e a confiança na justiça são perigosamente reduzidas. Nessas ocasiões, as pessoas aflitas e sem esperança tendem a ser movidas pela irracionalidade e paixão. E os indivíduos amargurados tornam-se mais vulneráveis a políticos demiúrgicos que lhes acenam com o alívio de suas desventuras.

A despeito do angustiante quadro de incertezas, a Constituição afiançava um sistema republicano e um regime democrático. A República de Weimar, contudo, tinha um Legislativo frequentemente incapaz de gerar os acordos indispensáveis para o Executivo não ser paralisado em suas iniciativas. E no âmbito social inexistia coesão suficiente para superar a profunda e multifacetada crise do país. A dinâmica político-institucional encaminhava a sociedade a um estado de anomia. O espírito do tempo refletia o entrelaçamento da intolerância partidário-ideológica com a rejeição àquelas circunstâncias adversas. Essa situação favorecia os partidos revolucionários de massa e tinha presente, conforme a perspectiva weberiana, os elementos constitutivos de um status nascendi, isto é, as condições propícias à consolidação de lideranças políticas portadoras de carisma. Diante da incapacidade das instituições republicanas em reverter a entropia de um sistema sociopolítico a ensejar uma guerra civil, evidenciavam-se três possibilidades: a institucionalização de um regime sob a tutela militar, a implantação de uma ditadura comunista, ou o estabelecimento de uma autocracia nacional-socialista.

Na eleição para o Parlamento federal de 1930, os socialistas com cerca de 25% do número de cadeiras despontam como a primeira força política em um sistema partidário fragmentado em dezenas de agremiações. No sufrágio ocorrido dois anos depois, os socialistas caem para a segunda posição, os nazistas alcançam a primeira, elegendo perto de 33% do Legislativo, e os comunistas ficam em terceiro lugar. Tais resultados comprovaram a força da insensatez que levou quase 70% dos eleitores escolherem ideários extremos (à direita ou à esquerda) e recusarem opções menos afastadas do centro democrático. Os votos restantes foram pulverizados entre os aproximadamente trinta partidos existentes.

Com efeito, a soberania popular rejeitou alternativas partidárias, como os liberais, cristãos, democratas, conservadores e nacionalistas moderados. O cidadão curvou-se ao radicalismo ideológico e acatou o passionalismo messiânico. Dito de outra forma, o povo preferiu favorecer a polarização e o sectarismo político, bem como escolheu avalizar o autoritarismo em detrimento da democracia. Enfim, para a saída de uma ambiência social de inseguranças o eleitor preferiu correr o risco previsível de uma tirania. Assim, o nacional-socialismo credenciou-se politicamente a chefiar o gabinete ministerial.

Após idas e vindas, em janeiro de 1933, o presidente da Alemanha decide nomear o carismático líder da corrente vitoriosa para chefiar o gabinete ministerial. No primeiro gabinete constituído, além do chanceler, havia dois ministros vinculados ao nazismo, outros dois eram do partido nacional popular e os demais eram apartidários. Logo após o início do novo governo, o presidente seria persuadido pelo premier a dissolver o Parlamento e convocar nova eleição com o propósito de ampliar apoios e, principalmente, conquistar mais cadeiras para o movimento nazista. No entanto, poucas semanas antes do novo sufrágio popular, ocorre um incêndio criminoso no edifício-sede do Congresso praticado por um jovem anarcossindicalista holandês, mas atribuído pelos governistas a uma “conspiração dos derrotados”. Diante da comoção nacional e a pretexto de defender a República e a segurança dos cidadãos, o ardiloso chanceler leva à homologação do presidente um Decreto que afiançava ao chefe de governo poderes extraordinários para combater os inimigos do Estado. Esse dispositivo jurídico suspendia os direitos individuais, as liberdades de imprensa e de reunião, além de tornar lícito violar o sigilo das comunicações, proceder buscas e apreensões em domicílios. Com tal instrumento em mãos o premier mobiliza as forças policiais, às quais se juntam paramilitares, em perseguição aos adversários.

Entrementes, o carismático chanceler faz um périplo pelo país em uma frenética campanha. Não surpreende que os nazistas tenham conquistado perto de 40% dos assentos no Parlamento. Muito embora esse triunfo tenha sido o bastante para levar o nazismo a ser o protagonista da cena política, ainda não era o suficiente para realizar mudanças constitucionais. Para atingir o quórum mínimo de dois terços para mudar a Constituição, eles precisariam de alianças com parlamentares de bancadas mais ao centro do espectro político-partidário (centristas católicos e conservadores nacionalistas). Os comunistas e os social-democratas tinham perto de um terço dos votos no Congresso, mas eram mutuamente hostis na arena eleitoral e sindical. Valendo-se de meios próprios da democracia e em conformidade com a Carta Magna, o partido nacional-socialista forma uma coligação no Congresso que lhe garante maioria qualificada para expurgar da Constituição as garantias básicas do regime democrático. A Lei dos Plenos Poderes, sancionada pelo presidente dias depois, transfere a atividade legislativa para o Executivo, concede ao chanceler a prerrogativa de administrar por decretos e de alterar tratados com governos estrangeiros. Essa lei tinha a sua validade prevista para quatro anos. Ela seria estendida, em 1937, por mais um período, e em 1941, já com a guerra em curso, é novamente prorrogada até a derrota da Alemanha e o fim do regime.

O nazismo cumpria, assim, o seu intuito em destruir o sistema democrático “por dentro”, após dez anos da sangrenta e fracassada tentativa em derrubar o governo vigente “a partir de fora”. Vale dizer, a tática da “revolução legal” foi exitosa, porquanto a ruptura antidemocrática foi realizada depois da conquista do poder pelo voto. Isso marca o começo do fim da democracia e da República de Weimar.

Dois meses depois da Lei Plenipotenciária ter sido aprovada foi introduzida uma norma que permitia o Executivo consultar diretamente a população sobre determinadas iniciativas. Em outubro, o novo regime anuncia a sua primeira decisão de impacto na política externa: a retirada do país da Liga das Nações. Nesse ínterim, dissolve o Parlamento e convoca outra eleição para o mês seguinte e na mesma data um referendo sobre a decisão de saída da Liga. Os resultados de ambas as consultas foram consagradores para o governo. Pouco mais de 90% dos eleitores manifestaram-se favoráveis à iniciativa e em apoio ao partido único. Com o passar do tempo, a autocracia nacional-socialista cada vez mais se vale da estrutura partidária-paramilitar – dirigida por uma burocracia que denomino de burocracia carismatizada – para expandir o controle social e promover a mobilização de multidões submissas ao líder e crédulas quanto à sua missão de construir um poderoso país imperial. De sua parte, a burocracia subjetivada estatal atuará no sentido de tornar o comportamento coletivo consentâneo com o ideário do totalitarismo nacional-socialista.

Enquanto isso, em contraponto à democracia representativa, a competente propaganda governamental nazista passa a destacar a legitimidade da nova ordem instituída como um insólito “cesarismo moderno” – um sistema de domínio centrado na autoridade de um líder político e na crença da excepcionalidade do seu caráter. Essa lógica da “aclamação referendada” corresponde parcialmente ao que Max Weber denomina de “presidencialismo plebiscitário”. Sob essa perspectiva, o denso vínculo entre o líder e seus seguidores é muito mais emocional que racional. Em última análise, essa relação prescindia tanto da intermediação partidária quanto de uma base de apoio parlamentar no Congresso, como de regra acontece em um Estado democrático de direito. Com efeito, o regime autocrático estabelecido assentava-se no intenso laço afetivo entre o líder político carismático e a população em geral. A transição da República de Weimar para o “Estado do Líder” implicou em uma dualidade, visto que possuía duas dimensões contravenientes: a normativa e a prerrogativa. A primeira, que correspondia a instituições formais estáveis com regras impessoais e objetivas, era operada por uma ampla estrutura administrativa racional-legal (domínio burocrático); a outra era derivada de um complexo substrato extralegal e subjetivo, cuja legitimidade estava associada diretamente à autoridade emanada do líder (domínio carismático).

Como se sabe, a história ensina e nos mostra (des)caminhos, mas nem sempre aprendemos com ela. As inequívocas diferenças de lugar, tempo e circunstâncias não sugerem que algumas analogias devam ser desconsideradas para subsidiar o entendimento da crise da democracia representativa contemporânea no Brasil e alhures. Na atual conjuntura nacional, com inédita frequência, pessoas arredias às duas candidaturas presidenciais à frente nas pesquisas são taxadas de fascistas ou comunistas, respectivamente, pelos idólatras do lulopetismo ou do bolsonarismo. Sem vocação para estadistas, ambos os lideres à frente desses populismos antagônicos não têm manifestado aversão por autoritarismos (atuais ou passados) e acolhem sem constrangimento a adesão de apoiadores radicais e associações extremistas. Em nosso festival macunaímico tem-se amiúde uma imprensa (tradicional e digital) com análises parciais de fatos político-eleitorais, academias que não professam o apartidarismo e segmentos das forças armadas a se envolverem em assuntos impertinentes às atribuições tipicamente militares. E nos três Poderes de feitios pouco republicanos são percebidos um Legislativo fisiológico, um Executivo encurralado e um Judiciário ativista.

Diante desse cenário de crise institucional é preciso acreditar no rompimento da desagregadora polarização ideológica-partidária, apesar do escasso tempo para consolidar-se nas urnas uma alternativa competitiva em relação àquelas duas candidaturas. Em meio a esse quadro, a defesa do “voto útil” no primeiro turno macula a democracia, reforça o maniqueísmo, expõe a conotação de confronto de “seitas partidárias”, estreita a saudável prática do voto livre e inibe a escolha com a consciência limpa. O cidadão de bem reconhece a necessidade de políticos honestos, democratas e aptos para viabilizarem governos que reduzam as desigualdades sociais e promovam a prosperidade econômica. Mais do que isso, considera indispensável lideranças capazes de superar o excludente “nós e eles” e o simplório “o bem contra o mal”. Lamentavelmente, é ínfima a possibilidade objetiva de escapar-se daquela anacrônica polaridade ideológica, mas como o processo eleitoral está sujeito ao imponderável, alea jacta est! Quanto ao segundo turno, isso requer outro texto com uma ponderação cujos argumentos derivam de fatores aqui não abordados e de informações ainda desconhecidas.