O jornalista e escritor Fred Navarro acabou de publicar a comédia “Inferno Tropical” (para quem se interessar, é só ir ao site da Amazon). Radicado em São Paulo há mais de três décadas, o autor pernambucano saiu do Nordeste, mas o Nordeste, como Roma para Lutero, continuou nele, e isso a ponto de torná-lo um importante lexicógrafo. Refiro-me, é claro, a seu conhecido “Dicionário do Nordeste”, obra não só de uma reveladora riqueza da nossa cultura regional, como de utilidade máxima para redatores, profissionais do livro, estudantes e estrangeiros que buscam conhecer e, num sentido amplo, “ler” o Nordeste.

Agora, Navarro, a quem não falta experiência em grandes veículos da imprensa nacional, nem rigor, nem erudição, incursiona pelo teatro e o faz de uma maneira toda sua, sob o signo da ironia. O que não é de estranhar para quem o conhece ou para quem o acompanha no seu prestigiado perfil do Twitter. Nessa rede social, seus comentários podem ser arrolados na rubrica da Política, e neles a expressão irônica é que dá o tom e o sabor para milhares e milhares de seguidores. É no Twitter que alia a concisão à acidez do humor, o comentário lúcido a uma visão independentemente crítica. Por sua atividade naquela rede social, vê-se que Fred Navarro é um frasista como poucos, e oxalá suas reflexões não venham a se perder nas águas velozes e turvas da web. Eis aí outra das credenciais que agora pode levar seu público a ler e conhecer, ainda que sem a luz dos palcos, a comédia que vem de publicar.

“Inferno tropical” é uma visão do Brasil, mas bem que pode ser também uma visão da própria humanidade. É uma comédia, porém, em suas entrelinhas, perpassada por uma visão trágica e atormentada do ser humano. Não por acaso, é uma “vida” “post mortem” que reúne no inferno, afora o próprio satanás, personagens oriundas das várias regiões brasileiras: um político e banqueiro gaúcho, uma psicanalista paulista, um funileiro amazonense, um poeta mineiro, uma macumbeira pernambucana e um surfista carioca. Eis um time diverso em que os jogos verbais e os divertidos diálogos brotam com exuberância e cálculo, nos quais não faltam afiadas alusões a gente como Shakespeare, Freud, John Donne, Kafka e o conterrâneo Gilberto Freyre. 

Navarro escreveu uma pequena obra-prima. A ironia e o humor, continuados, ágeis, mordazes, mobilizam nossa atenção. A inteligência do seu texto mobiliza nossa própria inteligência. Estamos todos diante de um autor que, ao ser rigoroso com as palavras, oferece-nos o melhor de seu espírito cético e irrequieto. 

Mas o que sobra da ruína moral que o irônico e iconoclasta autor se compraz em apontar nessa curiosa “temporada no inferno”? Salva-se, sobretudo, a Poesia, e o texto por si mesmo é uma prova disso ao nos dizer pela voz do próprio diabo: “Ah, a sublime e inatingível, a eterna fugitiva, a incompreensível poesia… A única forma de expressão que revela os tesouros mais bem guardados do universo […]”. Eis uma declaração tão fervorosa quanto profunda, e tanto mais profunda quanto ciente de que a Poesia é o que nos escapa e o que, paradoxalmente, nos ilumina os arcanos do universo.

Finalmente, não preciso dizer que o texto de Navarro dialoga, já a partir do seu título, com o tema fecundo, naturalmente nunca de todo exaurido, do próprio mal. Brincar com o mal, contextualizá-lo às circunstâncias nacionais e pessoais, vingá-lo pela emoção estética da poesia e do humor, eis ainda o que a ironia da peça nos traz, com graça e reflexão, em seu riso que castiga os costumes. Enfim, como diz o diabo à certa altura: “Evite falsificações. Inferno legítimo só aqui! […] Os humanos não devem sentir saudades do inferno falsificado que é a Terra, eis a questão”. Ao fim e ao cabo, é como escreveu Kant com simplicidade e sabedoria: “Voltaire diz que os céus nos deram duas coisas para compensar as inúmeras misérias da vida: a esperança e o sono. Ele poderia ter acrescentado o riso a essa lista”. No inferno de Navarro, como sabidamente no de Dante, não há esperança nem sono, mas há, pelo menos para nós, seus leitores, em “suave mari magno”, o riso que Kant aditou à lista de Voltaire.