Brasil, em 1916 – autor desconhecido.

 

Já sabíamos que o Brasil madrugara na admiração por Marcel Proust. Agora temos disso uma prova incontornável: a documentação, reunida e interpretada, de sua recepção literária em terras brasileiras. Refiro-me a “Proust sous les tropiques: diffusion, réceptions, appropriations et traduction de Marcel Proust au Brésil (1913–1960)”, de autoria do suíço-brasileiro Étienne Sauthier, publicado na França no ano passado, isto é, em 2021, justamente o ano do sesquicentenário de nascimento do autor de “Em busca do tempo perdido” (faltou à edição um colofão com essa referência!). O livro, por ora, ainda não tem uma necessária edição brasileira.

Fruto de uma tese de doutorado em História, a investigação de Sauthier tem o condão de (passe o lugar-comum) preencher uma lacuna, o que de resto é quase uma obrigação de uma boa tese. Não que o assunto seja de todo virgem, uma vez que Maria Marta Laus Pereira Oliveira, há muitos anos, já defendera, em doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a tese “A recepção crítica da obra de Marcel Proust no Brasil”, ao que parece, salvo engano, nunca transformada em livro para o grande público.

Proust, como logo nos diz Sauthier na introdução ao seu trabalho, chega ao Brasil em 1920, nas asas festivas da notícia de que ganhara o prestigiado Prêmio Goncourt de 1919. Aparecia nas livrarias em sua língua materna, com uma cinta que de imediato atraiu leitores e intelectuais: “Prêmio Goncourt”. A cinta, é claro, envolvia “À sombra das raparigas em flor”, o segundo volume do seu imenso romance “Em busca do tempo perdido”.

Na França, a premiação causara desapontamento e polêmica, pois, logo após a “Grande Guerra” (1914–1918), esperava-se não só alguém mais conhecido, como mais realista e politicamente engajado. Contestações à parte, o fato é que o prêmio lançou o autor a um patamar de reconhecimento internacional. É claro que ninguém, em ambos os lados do Atlântico, entendia muito bem o que se passava, pois na própria França a imensa obra só se viu inteiramente publicada em 1927, abrangendo um arco de tempo que remontava ao ano de 1913, quando Proust publicara, às próprias custas, “No caminho de Swann”.

Em terras brasileiras, como enfatiza o pesquisador, a obra proustiana encontraria uma recepção plural tanto no tempo quanto no espaço. Rio e São Paulo reagiriam ao autor cada uma à sua maneira. Belo Horizonte, por seus elos com a capital do País, não ficaria de fora. O Recife e o Nordeste em geral se fizeram acolhedores. Enfim, o estudo de Sauthier “[…] permite ver que se desenvolvem, no Brasil da primeira metade do século XX, centros culturais alternativos à capital”. Mas o Brasil intelectual de então era contemporâneo de uma escandalosa taxa de analfabetismo de 65%.

Analfabetismo, como nos alerta Oto Maria Carpeaux num de seus ensaios, que nunca foi raro quando se produziu alta literatura em vários países ocidentais. No mais, o País, ainda que não fosse um emissor de cultura para o mundo, estava preocupado em se modernizar: houve a Semana de Arte Moderna de 22, a proliferação de inúmeras revistas literárias (dentre as quais a nacionalista “Revista do Brasil”, de Monteiro Lobato), o Regionalismo nordestino, com Gilberto Freyre à frente, e muito mais. Nas palavras de Sauthier: “O Brasil pode então ser visto como um espaço cultural em mutação”. Fermentando esse clima nacional, como bem chama a atenção o pesquisador, muitos intelectuais e artistas dos primeiros decênios do século 20 frequentavam Paris, onde por vezes passavam longas temporadas: um Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde), um Graça Aranha, um Paulo Prado, um Gilberto Freyre, vários outros. Por sua vez, aguçavam-se “[…] as tensões já existentes ao longo do século 19 entre ideal francês e vontade de independência cultural brasileira”. A assimilação de Proust muito teria a ver com esse agônico cenário.

Diversamente de São Paulo e do Rio, o Nordeste teve, por assim dizer, um outro olhar sobre Proust. É o que o autor nos aponta mais de uma vez. Vários fatores contribuíram para isso, inclusive uma “[…] chegada mais romanesca da obra de Proust”, na qual tem protagonismo o poeta e médico Jorge de Lima, ele que viria a ser autor do primeiro ensaio brasileiro sobre o escritor francês. Em Maceió, o poeta de “Invenção de Orfeu” teria herdado de um cliente livros autografados de Proust, pois esse cliente, por sua vez, conhecera no Recife o jovem e pitoresco Henri Rochat, ex-secretário e ex-amante do escritor francês, deslocado de Paris, por solicitação do próprio Proust, para um emprego na América do Sul, por Horace Finaly, banqueiro e amigo de Marcel desde os bancos escolares, o que fez com que o Recife passasse a fazer parte literalmente da geografia literária proustiana (Agora em 2022, saiu na França o livro “Cartas a Horace Finaly”, organizado por Thierry Laget).

Finalmente, para ser conciso, no que toca ao Nordeste, deve-se ressaltar que a recepção e a apropriação proustianas, como demonstra o trabalho de Sauthier, foram plenas de proustianos entusiasmados, a exemplo de Gilberto Freyre, José Lins do Rego, do citado Jorge de Lima, de Gláucio Veiga, Tadeu Rocha, Otacílio Alecrim, Jaime Adour da Câmara, Gastão de Holanda, Evaldo Coutinho, Joaquim Cardozo, de Samuel MacDowell Filho, de Willi Lewin, Ledo Ivo e Aderbal Jurema, cada um, a seu modo, estudando, homenageando e difundindo, em livros, jornais e revistas, o “moderno” autor francês. Quanto a Gilberto Freyre, que de resto havia lido Proust na juventude quando de sua temporada europeia, como registra em seu diário “Tempo morto e outros tempos”, Sauthier sublinha que o próprio fato de esse autor inscrever “Casa-grande & Senzala”, em 1933, “[…] sob os auspícios proustianos, mostra que Proust foi assimilado nos meios da elite brasileira”. Freyre, como se sabe, costumava dizer de si mesmo, entre grave e jocoso, que era apenas “[…] um parente — irremediavelmente pobre — de Proust”…

O Brasil, como já se disse e se repete com frequência, não é para amadores! O País surpreende. Com o gênio de Proust, não foi diferente, sem embargo de sua recepção ter igualmente se devido, indubitavelmente à valorização da cultura francesa entre nós. Nas palavras de Sauthier, ao fim de sua empreitada historiográfica, Proust está no Brasil “[…] como em sua própria casa”! Nesta casa, um continente fragmentado e tropical, tão cheio de contrastes e diferenças, tão socialmente desigual desde que por país se entende, a acolhida de Proust, com maiores ou menores intervalos de tempo, prossegue com todas as letras e entusiasmo. Lido, às vezes mal lido, sempre citado, estudado nas universidades (e não só na área de Letras!), traduzido por nomes como Mario Quintana, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Lúcia Miguel Pereira e Fernando Py, Proust segue em frente e não dá mostras de ir dormir o sono dos esquecidos. Nada o detém: sua acolhida continua. Neste ano, por exemplo quando se comemora, em 18 de novembro, seu centenário de morte, o autor de “Em busca do tempo perdido”, pela terceira vez, renascerá entre nós, desta feita na já muito aguardada tradução de Rosa Freire D’Aguiar e Mário Sérgio Conti.

Para concluir, este inevitável, mas sincero, lugar-comum: muito e muito ainda teríamos a dizer de “Proust sous les tropiques”. Todavia, é como escreveu Anatole France, “A vida é curta, e Proust é muito longo”. Apesar disso, Étienne Sauthier sabe nos levar, com leveza e erudição, pelos vários caminhos brasileiros do genial francês.