Estradas - Paul Cezanne

Estradas – Paul Cezanne

 

Desde o início do agora moribundo governo de Jair Bolsonaro, já havia rumores (fundamentados, é certo) dando conta das afinidades entre o presidente e as polícias militares. Subtraí-las ao poder dos governadores sempre foi um sonho dourado dos extremistas que, em 2018, assumiram as rédeas do País. É claro que o presidente fez o que pôde e o que não pôde para ter êxito em seu autocrático intento de subordiná-las ao Executivo nacional. Elas, as PMs, ficariam em sua mão. Não havendo o almejado êxito, haveria que bem explorar o que se tinha para o dia. E assim, usando bem a sua implacável Bic, bicou a Polícia Rodoviária Federal, pondo à sua frente um fiel devoto do seu ideário neofascista.

Dessa forma, enquanto chamava o  Exército de “meu Exército”, o que, sem dúvida, causava náuseas aos generais mais republicanos, o presidente, de caso pensado ao que parece, acolhia em silêncio e com ardor a lealdade das hostes daquela que veio a ser um dos maiores redutos do bolsonarismo: a Polícia Rodoviária Federal. Num país imantado às rodovias e delas dependente, é claro que a PRF é altamente estratégica. Sem fluxo livre dos transportes e das mercadorias, o País cai no buraco do desabastecimento, com a divisa para o caos social tornando-se delgada e porosa. Foi notável ver, na Televisão, como os dirigentes da PRF se esforçaram para disfarçar o indisfarçável corpo mole da corporação face ao terrorismo dos bolsonaristas que bloquearam as estradas do País.

“Quem cala consente”, diz o dito popular, e Bolsonaro calou-se mais uma vez. Quando falou, foi para raivosamente debitar à esquerda os métodos de seus comparsas. E Aras, seu fiel escudeiro, só a muito custo deu as caras e ainda assim para proferir os lugares-comuns de sempre. Que sorte a nossa de estarmos num país em que “as instituições estão funcionando normalmente”! Eis aí o mantra encobridor do estresse institucional que a extrema direita causou em seus longos e desastrosos quatro anos de poder! Bolsonaro e sua turma foram naturalizados, normalizados, admitidos como “players” do jogo democrático, mesmo quando todos sabiam que entraram para destruir e cupinizar a democracia.

Agora, quando as cortinas se fecham após o deprimente espetáculo, quando uma plateia de fervorosos oportunistas de plantão já se retira, muitos deles já saudando e até orando por Sua Excelência o Presidente Eleito, agora, mais uma vez, nas vascas do fim, surge esse epítome de bloqueio de estradas, com fanáticos fantasiados de patriotas a clamar por “intervenção militar” e por um golpe para sanar a nação. Anacrônicos, patéticos e anticonstitucionais, órfãos e viúvas, ao lado de uma polícia com o freio de mão puxado, gritam histericamente por um golpe que ficou apenas no desenho, sempre insinuado pelas frases do rancoroso oráculo que uma eleição equivocada colocou no Planalto. Tarde demais.

A bola está no centro. Foi no centro que Lula, com grande luta e habilidade, colocou a bola da nova partida democrática. O que não significa que a extrema direita sob o nome cínico e equivocado de “direita” não tenha vida depois da vitória da democracia. O extremismo sai da luz do dia, mas ficará à espreita no meio das trevas, pronto para faturar em cima dos erros do espectro político que assume o poder em janeiro de 2023. Quem viver verá.

O fato (e aqui só repito o que tantos já notaram) é que o Brasil escapou por muito pouco da programada destruição do bolsonarismo. Não por acaso, o senador Flávio Bolsonaro foi às redes sociais dizer que não se devia “desistir do nosso Brasil”. Esse “nosso Brasil” é um país obscuro e paralelo, onde vicejam negacionismos, violência, homofobia, racismo; é um país sem ciência, sem educação, sem saúde, onde os pobres têm a passividade que só a fome e o desalento lhes proporcionam. Esse “nosso Brasil” é o país das forças de segurança (que constitucionalmente são de todos) forjadas numa lealdade canina ao líder político que odeia o contraditório e quer um país à sua deformada imagem humana. Nesse “nosso Brasil”, a estratégica Polícia Rodoviária Federal não desbloqueia estradas nem ajuda eleitores do Nordeste a chegar às urnas, porque tornou-se a polícia de alguns, e não de todos. Mas logo a democracia voltará a circular, sem ódios, sem extremismos, sem armas, sem fanatismo. A estrada é longa, melhor sair da contramão.