Tarcisio Patricio de Araujo[1]

O Brasil está entre os países – subdesenvolvidos – em que, quando se trata de privatização de empresa pública, estereótipos predominam: estatal é o céu, privado é o inferno; ou vice-versa. Não se debate o tema, pra valer. No entanto, o país é ótimo material empírico à espera de embasar uma discussão séria.

Em cinco décadas do século XX (1930-80), o país se tornou fortemente industrial, além de dotado de um terciário moderno e de um pujante agronegócio. Crescimento médio anual próximo a 7,0%. Sob a batuta do setor público, que se associava ao capital privado, nacional e estrangeiro. Difícil imaginar que, naquela etapa da história, o volume de investimentos em diversos segmentos de infraestrutura e insumos básicos houvesse sido mobilizado via capital privado. OK. Ponha-se na conta de “necessidade histórica”. Outros tempos, sob forte influência intelectual da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). Celso Furtado (Brasil), Raúl Prebisch (Argentina), Aníbal Pinto e Osvaldo Sunkel (Chile),… A era de ouro do capitalismo, com o Estado como ator-chave, consolidada em três décadas pós-1945, havia levado ao estado de bem estar social europeu (welfare state), e só viria a ser desafiada por crises econômicas em meados dos anos 1970. Não havia espaço para ideias diferentes da forte defesa do Estado. E ventos da (então ainda não seriamente contestada) experiência de planificação socialista…

Fossem governos civis ou militares, desde 1930 o Estado era quase tudo. O resultado é conhecido: crescimento, modernização, desigualdade, pobreza, inflação; e, curiosamente, descaso com tratamento adequado de educação e do sistema educacional. Tempos da normalidade de 15%-20%, ao ano, de aumento no índice geral de preços. Mas veio a crise (mundial) pós-1975, no Brasil exacerbada no início dos anos 1980, e novos ventos já indicavam grandes mudanças. Àquela altura, nossa “normalidade” inflacionária já ultrapassava o patamar dos 100% (110% em 1980). Mas já tínhamos a instituição da correção monetária, implementada na era Roberto Campos-Otávio Gouveia de Bulhões, que na verdade era ideia já sugerida pelo (ainda hoje relativamente desconhecido) economista Ignácio Rangel.[2] A correção monetária, germe da inflação inercial, mas poderosa âncora para ajudar a proteger a saúde fiscal do setor público por anos e anos, só veio a quase se acabar quando do Plano Real (1994). No contexto brasileiro, a correção monetária – que, rigorosamente, contribuiu para ir postergando e evitando a imersão total da economia brasileira em uma clássica hiperinflação, como a alemã de 1923 – pode ser também considerada, olhando-se para o passado, “necessidade histórica”. Tratava-se de, conforme feito em 1964-67, no âmbito do PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo), viabilizar taxas de juros positivas. Os juros reais eram então negativos, porque a inflação se aproximava dos 100% ao ano e vigia a Lei da Usura, que instituía a taxa (nominal) máxima anual de juros de 12% (algo que se tentou ressuscitar por ocasião da implementação da Constituição de 1988).

Esse o Brasil em que reinaram as estatais. Só no período do “Milagre Econômico” (1967-73), teriam sido criadas 231 empresas públicas[3], um recorde, entre as quais se incluíam subsidiárias de companhias como Petrobrás e Vale do Rio Doce.

Foi no ambiente de crise da chamada década perdida (anos 1980) que, novamente, o pioneiro e desbravador Ignácio Rangel tentou ser ouvido; debalde. Rangel propôs – principalmente em artigos no Jornal Folha de São Paulo – que, como saída para a crise de 1981-83, e para redefinição dos caminhos do Brasil, se instituísse o mecanismo de concessão de serviços públicos a empresas privadas. Seria assim captado o investimento (privado) que faltava ao setor público insolvente. Ele falou sozinho por bastante tempo, angariando poucos leitores – entre os quais me incluo – que nutriam simpatia por sua ousada proposta, que cheirava a coisa de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, então midiáticos baluartes de privatização e o que depois se chamaria de “Consenso de Washington”. Roberto Campos, em A Lanterna na Popa (Topbooks, 1994, capítulo VI, p. 203), dedicou um rodapé à proposta de Rangel, assim resumida: Ignácio Rangel viria a adotar “posição mais matizada e realista. Passou a advogar um sistema de ‘privatização controlada’. O estado licitaria concessões de serviços públicos a empresas privadas, que teriam o direito de exploração. Estas, podendo dar garantias reais aos financiadores, teriam mais flexibilidade na captação de recursos do mercado financeiro a taxas mais baixas. Isso viabilizaria maiores investimentos e/ou redução de tarifas, com impacto favorável sobre a atividade econômica”.

Privatizações, como se sabe, vieram a ser feitas desde inícios do anos 1990, no Governo Collor, com continuidade no período pós-Plano Real, e interrupção nos períodos Lula-Dilma. Foram instituídas agências reguladoras (pós-1994), cujo papel veio a ser bastante deteriorado nos governos petistas, sendo desavergonhadamente mantido no presente governo (claro, não se poderia esperar algo diferente disso).

A despeito de processos obscuros e não explicados, nessa experiência recente de privatização os resultados positivos são inegáveis: os bancos públicos estaduais, criados durante o PAEG, foram quase todos privatizados, sem muito choro, livrando o estado de um motor de geração de déficit e inflação. A Vale do Rio Doce, pós-privatização, passou a ter maior inserção no mercado internacional e a pagar dividendos ao Tesouro, o que antes não ocorria. Acesso a serviço telefônico passou a ser algo razoavelmente democrático – em contraste com o pagar à vista por uma linha telefônica e esperar anos pelo serviço; com certo atraso, o país se aproveitou da revolução tecnológica no segmento de comunicação; problemas sérios, pendentes: insatisfatória qualidade dos serviços, regulação idem, desrespeito ao cidadão. Para se evitar o que vem ocorrendo com nossa frágil regulação, há que efetivamente institucionalizar-se o aparato regulador, tornando-o acervo do estado e não de governos. Agências reguladoras com cargos preenchidos por critérios essencialmente técnicos. Reforço de mecanismos competitivos. Maior transparência no sistema informativo, com maior clareza para a sociedade, para o usuário.

O resultado brasileiro, no campo “estatal versus privado”,  é prenhe de elementos empíricos que servem de insumos para discussão sobre o papel do Estado:

  1. a) Afora o fato de ser muito concentrado – algo que recebe crítica de estudos preparados sob a ótica do FMI e do Banco Mundial – o setor financeiro brasileiro é considerado eficiente e dotado de respeitável padrão de segurança; trata-se de um segmento que passou por amplas mudanças desde o Plano Real, inclusive privatizações – como já referido.
  2. b) A empresa estatal Correios, que já proveu um serviço satisfatório ao cidadão, está em pandarecos, à espera de privatização, enfrentando uma crise que é resultado de tudo que representa má gestão. Com cerca de 140 mil funcionários (um número gigante) – entre ativos e aposentados – e um sistema de saúde que cobre o funcionário e respectivos pais, filhos e cônjuges; algo impossível de ser financiado e agora, na hora da quebra, acena-se com seguro saúde apenas para os funcionários, e um percentual de distribuição de lucros. Ora, uma empresa privada só ofereceria tal benesse se funding houvesse; e distribuição de lucros é procedimento corriqueiro em empresas economicamente saudáveis, e não mero expediente emergencial para resolver crise falimentar. Nota peculiar: lembre-se que os Correios foram o embrião do escândalo que veio a ser chamado de Mensalão.
  3. c) E como andam a Valec (transporte) e a Sete Brasil (sondas para a Petrobras), entre outras estatais criadas no período Lula-Dilma? Difícil identificar uma que seja rentável e livre de aparelhamento político-partidário.
  4. d) Adiciono uma qualificação da questão do estado nesta experiência recente. É frequente a referência, na crônica brasileira, à similaridade que haveria entre o período de 2010 (último ano da gestão Lula) a 2014 (incluído o governo Dilma) e o período do governo Geisel, em termos de intervenção estatal na economia. A meu ver, o que ocorreu no período 1974-79 já era parte do modelo que foi fundamental para a industrialização brasileira por substituição de importações. Entre outros traços, a utilização do BNDE(S) para favorecer a indústria. Ora, antes se tratava de apoiar segmentos industriais (têxtil, bens de capital, insumos básicos – por exemplo), com instrumentos creditícios dirigidos a setores, segmentos. (O erro, naquele momento, teria sido a opção pelo desenvolvimentismo – sem se cuidar adequadamente de anteparos e ajustes à crise que se avizinhava, decorrente do grande aumento dos juros no mercado internacional, o que viria expor a fragilidade brasileira em termos de dívida externa). Na era Lula-Dilma, fez-se uma caricatura do que seria tal política: o exemplo mais aberrante foi o de destinar algo como R$ 11 bilhões, em menos de cinco anos, a um único Grupo (JBS), sob a égide da chamada política dos “campeões nacionais”. Os objetivos espúrios associados a isso tornaram-se oportunamente claros, como se sabe. Em suma, a experiência dos governos petistas contribuiu bastante para mostrar como a via estatizante pode ampliar a corrupção e gerar crise econômica. Ademais, foi exacerbado o estereótipo do estado como ineficiente e aparelhador.

Um debate adequado teria pelo menos três pressupostos básicos: i) Impossível imaginar saída para o Brasil via reestatização; ii) há que se buscar o capital privado como agente-chave, o que obviamente inclui o capital externo; iii) deve-se montar um adequado aparato regulador, espelhado em experiências de outros países. Espelhado, não meramente copiado: não há receitas prontas e universais. Especificidades nacionais  obviamente devem ser levadas em conta. Para tal debate e proposições, o esforço é grande e necessita de bons quadros. O Brasil dispõe disso. E mais: a ideia de buscar uma terceira via mais atrapalha que ajuda; o diferencial vai estar na natureza e na qualidade do Estado que precisamos consolidar: regulador, com programas sociais sob a égide de efetivos mecanismos de monitoramento e avaliação, e que finalmente venha a pôr educação no devido lugar; um Estado que viria a de fato promover redução de desigualdades.

[1] Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco.

[2] A respeito, ver Fabian Scholze Domingues e Pedro Dutra Fonseca, Ignácio Rangel, a correção monetária e o PAEG: recontando a história. Estud. Econ. São Paulo, vol. 47, n. 2, p. 429-458, abr-jun 2017 – http://dx.doi.org/10.1590/0101-416147273fsdp. (Acesso em 08/01/2018, via SCIELO). A sugestão de Rangel foi feita por meio de projeto legislativo, em 1962, quando da curta experiência do parlamentarismo do período Goulart.

[3] Conforme Amaury Patrick Gremaud, Marco Antonio Sandoval de Vasconcellos e Rudinei Toneto Júnior, Economia Brasileira Contemporânea. São Paulo, Editora Atlas, 2017 (8a. edição). Afirmação feita no capítulo 15,  sem referência a fontes de informação a respeito desse ponto específico.