Conspiração – autor desconhecido.

 

A editora Record traduziu e publicou em 2020 o livro dos professores britânicos de política Roger Eatwell, da Universidade de Bath, e Matthew Goodwin, da Universidade de Kent: Nacional-populismo. A revolta contra a democracia liberal, publicado originalmente (National Populism) em 2018. Não foi um livro muito comentado, nem de grande repercussão, provavelmente por causa das teses que defende, pouco aceitáveis por parte dos democratas liberais.

A primeira tese dos autores é menos assustadora para os democratas liberais, e mais sofisticada. Os autores defendem que a ascensão do nacional-populismo, como eles denominam as novas expressões da extrema-direita, não resulta da crise de 2008/2009, mas tem suas raízes no final do século passado, portanto, há mais de um quarto de século. Para os professores ingleses, o nacional-populismo é a expressão de “quatro mudanças sociais profundamente enraizadas”. A mutação original, que adveio da democracia liberal, versa sobre a desconfiança de grandes segmentos da população em relação aos políticos e às instituições democráticas. Isso seria se de esperar, na medida em que a democracia liberal sempre buscou minimizar a participação social. A segunda mudança aborda o mal-estar com a imigração e com as ameaças de mudanças étnicas, sobretudo entre as populações europeias e norte-americanas estabelecidas. Em continuidade, a terceira sucedeu devido à globalização, visto que o mundo globalizado criou uma profunda desigualdade social e regional inter e intra países, provocando o que os psicólogos denominam de sentimento de privação relativa, ou seja, determinados grupos sociais sentem que estão perdendo posições para outros grupos. Neste quesito, observa-se que o sentimento de inferioridade advém de uma sensação de serem esquecidos pelo progresso econômico, mesmo entre aqueles que têm emprego e diploma. Por fim, a quarta mudança social, segundo os autores, trata do crescente desalinhamento entre partidos e massas, eleitos e eleitores, representantes e representados. Isso torna os sistemas partidários mais voláteis, fragmentados e imprevisíveis. Enfim, trata-se da crise de representatividade que o cientista norte-americano, originário da Polônia, Adam Przeworski, analisa em seu livro mais recente (Crises da democracia, Zahar, 2020).

Os autores Eatwell e Goodwin previnem aos mais apressados que nenhuma dessas mudanças explica isoladamente o fenômeno da ascensão do nacional-populismo. Eles argumentam que levar em conta essas mudanças em conjunto promove uma compreensão muito distinta, e melhor, do que as explicações que se prendem aos fatos imediatos e circunstanciais. Exasperam-se, os autores, com as ilações de jornalistas e cientistas políticos sobre eventos imediatos e circunstanciais como causas do novo populismo.

A segunda tese, porém, não agrada aos democratas liberais. Nela, os professores britânicos de política supracitados, afirmam que “o nacional-populismo possui um sério potencial de longo prazo”. Em outras palavras, conforme os autores, não estamos assistindo ao fim de uma era, mas ao começo de uma nova era, a era do nacional-populismo, que é a “expressão de uma revolta permanente contra a política e os valores liberais convencionais”. Esta tese lembra o livro de Pierre Rosanvallon (O século do populismo. Ateliê de Humanidades, 2021), embora ele caracterize o novo populismo de maneira distinta, compreendendo-o como a expressão da maior ameaça que a democracia conheceu desde a Segunda Guerra Mundial.

Ademais, a visão dos autores sobre o nacional-populismo é muito distinta da de autores mais conhecidos, como Steven Levitsky e Daniel Ziblat (Como as democracias morrem, Zahar, 2018) e Manuel Castells (Ruptura. A crise da democracia liberal, Zahar, 2018). Ela difere também de outras visões, menos conhecidas, porém peremptórias na condenação do novo populismo, como Giuliano Da Empoli (Os engenheiros do caos, Vestígios, 2020) ou Benjamin Teitelbaum (Guerra pela eternidade. O retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista, Editora da Unicamp, 2020). Todos condenam veementemente o novo populismo, o que Eatwell e Goodwin não o fazem.

Contudo, os autores do Nacional-populismo não estão sós. Simon Tormey (Populismo. Uma breve introdução, Cultrix, 2019) e Yascha Mounk (O povo contra a democracia, Cia das Letras, 2019), entre outros, partilham da ideia de que o populismo é uma revolta contra os malefícios que a democracia liberal provocou nos países desenvolvidos. Esses autores veem no populismo contemporâneo um movimento que pode arejar a velha democracia liberal, aproximando o povo das instituições democráticas, que necessitam de renovação.

Além dos prós e contras, a literatura recente sobre o novo populismo de direita pode, de forma um pouco simplória, dividir-se em duas vertentes: (i)  aquela que define o novo populismo como uma expressão política passageira e condenada a desaparecer, porque suas bases sociais são formadas por grupos sociais minoritários e declinantes[1]; (ii) a que defende a tese de que as mudanças sociais em curso devem persistir por algumas décadas, porque suas bases estruturais são vigorosas, como Roger Eatwell e Matthew Goodwin afirmam.

Quem tem razão? Só o tempo dirá.

Uma coisa é certa, o populismo já convive conosco no Ocidente há mais de um quarto de século, com feições diferenciadas, mais extremas ou menos extremas, dependendo do lugar e do momento. Nesse período, seu movimento tem sido errático: ascendendo aqui, descendendo acolá, e vice-versa. Assumiu de fato o poder em três países, porém eles têm pouca tradição democrática: Polônia, Hungria e Turquia. Sua ascensão na Itália ou nos países escandinavos é muito recente e não se pode dizer ainda que esses países caminhem para um regime autoritário. Em outros países desenvolvidos, como Áustria e Holanda, eles ascenderam ao poder, mas caíram logo em seguida. Em outros, como França, Alemanha e Bélgica, o novo populismo é relevante, mas secundário, porque nunca chegou ao poder. Em vários países, como Alemanha, França e Reino Unido, recentemente, o populismo perdeu força.

No caso do Brasil, onde o novo populismo emergiu nas manifestações de 2013/2014 contra a corrupção e galgou o poder rapidamente em 2018, ele sofreu uma derrota eleitoral logo em 2022, apesar do crescimento no Legislativo. Contudo, não se pode dizer que tenda a desaparecer. Afinal, seu líder, o capitão Jair Bolsonaro, teve 58 milhões de votos, e alguns de seus adeptos, até o momento em que escrevo estas notas (15/11), acampam em frente a quartéis, em particular o Quartel General do Exército (QGEx), em Brasília. Outrossim, as razões que explicam a ascensão do populismo de extrema direita na Europa não se aplicam ao Brasil. Não temos o problema da migração; nem nunca tivemos partidos sólidos e enraizados na sociedade; desigualdade não é novidade, é estrutural entre nós, habita o Brasil desde sua criação como nação, ao inverso dos países desenvolvidos da Europa.

De toda forma, não sabemos do futuro do movimento bolsonarista. Ele pode se enfraquecer ou mesmo crescer. Tudo depende da conformação política do próximo governo, de suas políticas e iniciativas. Estas serão eficientes se compreendermos a natureza da base social do bolsonarismo. Uma base eclética, composta de um amálgama de grupos sociais os mais diversos, pobres e ricos, cristãos das igrejas evangélicas e empresários do agronegócio. O bolsonarismo demonstrou ter raízes profundas nas classes médias; reúne grupos contraditórios, desde os defensores do retorno da ditadura militar aos defensores do capitalismo liberal; inclui grupos conservadores, que defendem costumes tradicionais, e armamentistas, que defendem um individualismo radical. Ante o panorama sociopolítico brasileiro, é preciso contabilizar também aqueles que votaram no bolsonarismo por ódio ao PT, ou por motivação bem mais pragmática, na esteira dos bilhões de reais que foram gastos para ampliar os eleitores do Bolsonaro. Diga-se de passagem, dinheiro público.[2]

As ciências sociais, à vista disso, têm um grande desafio pela frente: decifrar as motivações dos segmentos humanos que participam das bases sociais do bolsonarismo, as razões de sua identidade com uma figura aparentemente tão medíocre, por vezes levianamente definidas como neofascistas. O que sabemos com certeza, hoje, é que elas são bem mais do que isso. E, diga-se de passagem, já há vários pesquisadores debruçados sobre estas questões. Sua compreensão, por si só, evidentemente, não irá desmontar o bolsonarismo, mas será uma contribuição relevante para permitir a formulação de estratégias de enfrentamento eficientes.

 

[1] Trata-se de idosos, trabalhadores manuais, pequenos centros urbanos e “brancos sem diploma”, No caso dos Estados Unidos, esses grupos não são nem declinantes, nem minoritários; do ponto de vista da humanidade, os idosos não são nada declinantes, bem ao contrário.

[2] Ver a respeito. Elimar Nascimento. Reatar os laços In Será? 4.11/2022. https://revistasera.info/author/elimar/