Chico e MPB4 -1967

Chico e MPB4 -1967

 

“Dolo” é uma dessas palavras que são uma verdadeira casca de banana. Sua pronúncia deve ser com o primeiro “o” aberto, como em “pó”, embora muita gente boa a pronuncie com o “o” fechado. Apesar de ser da área jurídica, frequenta a mídia com desenvoltura quando, aliás, quase sempre se erra na sua prosódia. Enfim, trata-se de uma palavra erudita que significa simplesmente “má-fé”. Um poeta diria que é mais estético e lírico falar de “dolo” do que de “má-fé”, cuja sílaba “má” já é uma espécie de declaração de guerra.

É difícil dizer quem nunca teve, com maior ou menor intensidade, ao longo da vida, um pouco de má-fé. Um pouco, pois muita má-fé já é caso de cadeia! O “Dicionário Houaiss” explica e define “dolo”: “1.1 em direito civil, manobra ou se inspira em má-fé e leva alguém à prática de um ato com prejuízo para este; 1.2 em direito penal, a deliberação de violar a lei, por ação ou omissão, com pleno conhecimento da criminalidade do que se está fazendo”.

Nada como um dicionário para nos dar uma tranquilidade verbal e semântica! É tudo o que precisamos para abordar o intranquilo assunto com o qual gastaremos não verba, que aliás não temos, mas um pouco de verbo, que temos até de sobra. E o assunto é momentoso, pois envolve um genial compositor e poeta pátrio e uma juíza, que, como diz o povo, resolveu “causar”, pondo em dúvida uma criação musical e literária que é do conhecimento coletivo, da sociedade; “fato público e notório”, como dizem os advogados.

O compositor é Chico Buarque, que, malgrado qualquer eventual discordância ideológica e política que com ele se possa ter, sempre encantou as pessoas mais diversas da sociedade. O próprio Chico glosou a admiração que causava em música outrora famosa (“Você não gosta de mim / mas sua filha gosta”). A criação musical, por sua vez, hoje em sinistra discussão, não é outra senão “Roda Viva”, uma obra antológica de Buarque, com nada menos que 55 anos de história e sucesso!

Pois então. Quem diria que alguém, uma autoridade, duvidaria da autoria de Chico Buarque! É de cair o queixo, se é que não cai outra coisa menos pública e mais íntima, que uma juíza, a excelentíssima senhora Mônica Ribeiro Teixeira, venha a pôr em dúvida a autoria, repito, da célebre canção de Buarque, cuja reputação, a do autor, claro, é ilibada. É triste para o coração genial do compositor e mais triste ainda, senão deplorável, para essa juíza que, à falta de argumentos, lança uma sombra de má-fé sobre o compositor, quando, em verdade, é ela que, salvo engano e melhor juízo, age de má-fé, mal escondendo, assim, sua ojeriza ideológica. No subtexto, é como quem diz: “Será mesmo de Chico Buarque essa composição? Será que esse comunistazinho não a comprou ou a plagiou de alguém?”. O espírito de Iago (vide “Otelo”) e de negacionismo, insuflado por sabemos quem, vai destruindo os valores mais caros a toda uma geração de brasileiros.

Toda essa história ficaria um pouco melhor se não se soubesse que a referida juíza indeferia uma ação de Buarque contra o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que usou publicamente a canção “Roda Viva” à revelia do direito moral do artista. Eis a luz, se é que há luz nessa história tenebrosa, que muito explica, mas não justifica.

Estudos relacionados à psicologia cognitiva já provaram que juízes com fome e de mau humor tendem a dar sentenças negativas contra o réu. Não sabemos, e talvez nunca saibamos, se a juíza Mônica estava com fome ou mau humor quando indeferiu a ação, arranjando um jeito de amargurar um gênio como Chico Buarque. Se fome houve de sua meritíssima parte, parece de outra natureza: a fome de devorar ideologicamente o outro, desqualificando-o moralmente, atingindo-o na sua honra, e honra sensível de criador e figura já histórica da música popular brasileira!

É triste, mas significativo de um tempo, que essa história esteja acontecendo por estes dias. E mais triste ainda que tenha como protagonista uma personagem do Poder Judiciário, que outra coisa não fez senão afastar-se, em muito, daquela suposta imparcialidade que devemos admirar e desejar em todos os juízes. Um afastamento que trai emoções mesquinhas, empoderadas pelos ventos da extrema direita que, infelizmente, varrem o País.