Em sua edição de 26 de novembro, a “Folha de S.Paulo” publicou uma breve matéria sobre a diferença entre camelos e dromedários. Em tempos de uma Copa do Mundo num país oriental, nada mais momentoso e didático do que abordar esses bichos, cuja silhueta está ligada à legenda asiática, tão distante de nossas desventuras nacionais. Distante? Não faz muito tempo, o camelo era popular no Brasil, isso porque o Barão de Drummond, ao inventar o Jogo do Bicho, resolveu incluir o ilustre quadrúpede. Enfim, “acertar” no camelo (dezenas 29, 30, 31 e 32), assim como no prosaico galo ou no cotidiano gato, dentre outros bichos, era a alegria de ganhar algum extra, desafogando o bolso. 

Bem, parece que já vai passando o gosto popular pelo aclamado jogo, tempo em que legiões de aficionados (nome bonito para viciados) viam em toda parte sugestões para jogar, sobretudo números trazidos pelo acaso, à semelhança dos de placas de carro, de quartos de hotel, de residências, etc.; isso quando o jogador não se deparava pessoalmente ou em sonho com algum palpite mais concreto. Surgia, por vezes, uma profunda hermenêutica para decifrar a linguagem cifrada da sorte, a exemplo da historieta de que um apostador dissera para outro que iria jogar no “gato” porque sonhara com um. O outro perguntou por mais detalhes do propício sonho e logo pontificou: “O quê? O gato caía do telhado? É claro que você não deve jogar no ‘gato’. Jogue no ‘burro’. Gato que cai do telhado é burro!”.

Voltando aos pachorrentos e utilíssimos camelos, logo sabemos que geralmente o que vemos não é camelo, mas seu primo, o dromedário. São da mesma família, mas o camelo tem duas corcovas, sendo, portanto, o primo rico, aparentemente mais bem aquinhoado. Para nós, considerando a distância geográfica, tudo é camelo. De resto, convenhamos, a palavra “camelo” é bem mais palatável que a pedante “dromedário”. Só não sei se o camelo, o próprio, cospe como um dromedário. Sim, quando irritado, o camelo, digo, o dromedário, cospe. Já testemunhei a irritação e a consequente e terrível cusparada de um desses bichos (aliás, a charmosa lhama também cospe; deve ser um traço de família). Imaginem se a moda pega entre nós, bípedes implumes. Por ora gastamos nossa saliva com discursos e bate-bocas, e já está de bom tamanho para distribuirmos nossos perdigotos.

Em termos morais, digamos assim, o “piramidal” camelo (o adjetivo é de Guimarães Rosa), também chamado de “navio do deserto”, não fica atrás da pequena e operosa formiga; sim, a mesma que, na conhecida fábula, esnoba a dionisíaca cigarra (Mas “suspeito, como escreveu Jorge Luis Borges, que o encanto das fábulas não esteja na moral”). O camelo é, por natureza, uma criatura prevenida, vale por dois, conhece  bem a solidão e a aridez dos longos desertos, sabe que, na luta pela vida, os oásis são muito raros, quando não são uma verdadeira miragem. Daí é claro guardarem reservas para as longas e monótonas travessias.

Mas, com todas as suas qualidades, o camelo não está no sagrado Alcorão, “livro árabe por excelência”. Foi o já citado Borges que descobriu essa curiosidade ao ler a “História do declínio e queda do Império Romano”, do historiador Gibbon. O genial  autor argentino comenta que a ausência do camelo no grande livro é prova da autenticidade do texto: “Maomé como árabe não tinha por que saber que os camelos eram especialmente árabes; para ele, eram parte da realidade, não tinha por que os distinguir”. Enfim, diz Borges, “[…] um  falsário, um  turista, um nacionalista árabe teriam povoado de camelos cada página”. Talvez venha a propósito dizermos que Maomé subiu aos céus montado não num tranquilo camelo, mas num outro quadrúpede nunca assaz louvado: o cavalo, talvez mais rápido para chegar ao paraíso.

Para concluir, ainda tematicamente montado em nosso camelo (que é um dromedário!), a título de risonha ilustração e pitoresco fecho, deixo ao leitor os tercetos finais do soneto “Criemos camelos!…”, do poeta pernambucano Austro-Costa (1899–1953), cujo contexto social e político é a época de Getúlio Vargas (o Gegê do poema). Em seus versos, ele glosa a conhecida frase de Oswaldo Aranha: “O Brasil é um deserto de homens e ideias”.

“Nossos problemas… Como resolvê-los,

Se cuidamos tão só de fazer frases

E num milagre já ninguém mais crê?

Criemos juízo!… Não. Criemos… camelos!

O Brasil é um deserto… E o único oásis

É ainda o sorriso de Gegê…