Os Jogadores de Cartas – Paul Cézanne.

 

Os filósofos dizem que o tempo é uma exterioridade. Mas tem também uma dimensão interior. Já o poeta T. S. Eliot disse que o tempo passado está no tempo presente, que está no tempo futuro. E que o último dia do ano não é o último dia do tempo.

Hoje, eu vi o tempo passado. Na avenida Guararapes. Fui comprar um tênis com adesivo no solado. Por pressão de Conceição. Por conta de queda que levei.  Jogando futebol com meu neto. O que me valeu um inchaço no pulso. E dores. Até agora tenho resistido à radiografia. O veterano jogador precisa de zelo. Para enfrentar a geração próxima dos teen.

O fato é que atravessei a Guararapes. E me detive algum tempo. Olhando o que restou de antiga glória. A avenida mais importante da cidade. Que dava centralidade a atividades comerciais, bancárias e de serviços. Lojas de departamento que não existem mais. Uma intensidade de negócios que não brilha mais. Parei no centro da avenida. Entre os dois fluxos de veículos. Olhei para um lado. Para o outro. Alonguei a vista para o cinema São Luís. E vi um cenário desbotado. Muita pobreza. A economia informal ocupando as calçadas. Pequei o celular, fotografei o passado. E voltei ao presente.

Em seguida, parei numa loja de CDs antigos. Mantenho o hábito de ouvir o que gosto, olhando as próximas músicas. Uma a uma. Lendo na capa do CD. Autores. Intérpretes. Desta vez, comprei Liszt, Chopin, Grieg. E passei na padaria para levar croissant. Pensando no acompanhamento do tinto que vai irrigar as últimas noites do ano. Que se esvai. Desconstruindo as últimas voltas do relógio.

Assim fiz. Vivi o presente. Presente do dia. Música, pão e vinho. Inaugurei o concerto particular da tarde da terça feira com Chopin. Escolhi a dedo os Prelúdios e a Barcarolle. Esta, repeti uma, duas, três vezes. É uma peça delicada, lírica. Inspirada nos gondoleiros de Veneza. Na visão de cidade que é um romance. Molhada nas águas de canais que fazem fluir gôndolas e sonhos. Um mundo mágico feito de história, beleza e tecnologia.

A Barcarolle tem tessitura de notas que vão se ajustando em doce melodia do romantismo europeu. E projeta luz amorosa sobre a ânsia de planeta estressado. Por truques passageiros. E desnecessários. O sentido de permanência da música é aviso de perenidade. E harmonia. Aí entra o futuro.

Amizade. Nada é mais significativo para o futuro do que amizade. Amizade é o que liga, agrega, reúne, frutifica, gera, cria, semeia. E colhe. Liguei para amigos com quem almoço mensalmente. Denominamo-nos, em lúdico apelido, de cardeais. Não tanto pelo conhecimento de escrituras. Nem por sedução eclesiástica. Simplesmente porque geralmente nos reunimos em Olinda. Ao pé do Mosteiro. Cercado de igrejas. De palmeiras que são testemunhas de revoluções e mediações. Medicações. Orações. Enfim, ar litúrgico.

No fundo, é como se pertencêssemos a uma ordem muito própria. Sem código, manual ou disciplina hierárquica. Apenas, leve, segura e confortável amizade. Vinda de muitos séculos. De épicas batalhas. De éticas posturas. Cuja fiança moral é a confiança. Esmerilhada no ofício do respeito. E do afeto.

Pois bem, amigos. Aí estão, neste final de ano, passado, presente e futuro. Enlaçados na confiança entre pessoas. E na esperança de que as coisas vão mudar. Porque não podem assim ficar. Com o pulso contundido de veterano jogador.