No meu novo livro em processo de edição, e lançamento previsto para janeiro (Sonata de Outono – Perfis, Causos, Memórias, Crônicas, Artigos, Ensaios), rotulei um dos capítulos como Ensaios Irreverentes.  Com efeito, não sou daqueles que, como na fábula de Andersen, para não parecerem ignorantes, fingem ver a roupa invisível do rei. E assim, fiz críticas e restrições – de forma comedida e respeitosa, ressalte-se – a alguns monstros sagrados da nossa intelectualidade, como Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Clarice Lispector, Cacá Diegues, Cristovam Buarque e, mais remotamente, o nosso Virgínius da Gama e Melo e um certo francês, M. Robbe Grillet, que andou por aqui pregando a ideia de um “nouveau roman”, logo rejeitada, para o bem da nossa literatura de ficção.

A leitura da série de Laurentino Gomes sobre a escravidão no Brasil (já conhecia seus excelentes livros 1908, 1922 e 1989) me encoraja agora para mais uma tarefa delicada: colocar em bases mais frias e racionais a questão do escravismo colonial brasileiro, que ainda hoje provoca reações emotivas, juízos parciais e equiparações com outras realidades, ao meu modesto parecer, imerecidas.

Como preliminar, para evitar incompreensões, cabe-me esclarecer que, como todo brasileiro, na alma e no corpo, como afirma Gilberto Freyre, tenho traços de afrodescendente. No meu caso pessoal, com origem identificada e assumida, sem inibição nem jactância. Minha bisavó, Rosalina Carneiro da Cunha Rosas, era “cria da casa” do Barão do Abiahí, provavelmente filha do barão com uma de suas escravas, e babá de suas filhas, entre elas minha vetusta e saudosa professora D. Olivina Olívia Carneiro da Cunha, que a chamava carinhosamente de Bá. 

Mas a constatação impactante, para mim pelo menos, é a que faz Laurentino Gomes, ao dissecar o processo do tráfico de cativos da África para a nossa terra, através do qual recebemos quase cinco milhões de infelizes, ao longo de mais de três séculos. E a realidade é que essa vergonhosa e brutal operação se deu com a colaboração dos próprios africanos, sobretudo dos reinos da assim denominada Costa da Mina, que, em guerras quase permanentes, reduziam a escravos os povos vencidos, para vendê-los aos portugueses, ingleses, holandeses, ou quem mais os quisesse comprar. A transação era na base do escambo: cativos em troca de fumo, cachaça, pólvora, armas, sedas e itens de luxo para os reis, conchas usadas como moeda no Oriente, só eventualmente ouro e prata.

Havia lá – e a revelação é chocante – fortalezas, especialmente construídas e administradas por portugueses ou brasileiros, somente para abrigar as criaturas escravizadas, enquanto eram aguardados os navios que as conduziriam através do Atlântico, nas deprimentes condições já bem conhecidas. O negócio era muito lucrativo para ambas as partes, mesmo com as enormes perdas por mortes ou doenças no trajeto.

E mais ainda: havia amizade, até intimidade, entre os reis negros e o rei de Portugal.  O rei do Daomé (hoje República do Benin), em cartas, chamava o português de “meu irmão”. E chegou a enviar embaixadores ao Brasil, para negociar melhores condições de venda dos seus irmãos de cor, reduzidos à condição de simples mercadoria.

Por outro lado, dói-nos saber que, por aqui mesmo, os negros forros, quando podiam, também mantinham escravos, e também os tratavam com crueldade.  Machado de Assis, em sua ficção (Dom Casmurro), dá-nos testemunho disso. E sabe-se também que, no glorioso Quilombo dos Palmares, havia pessoas escravizadas.

Em suma: a escravidão, enquanto pecado social (o mais grave, como  considerava o sempre lembrado Dom Helder Câmara), foi um pecado de todos nós.  E este reconhecimento talvez nos possa levar a uma postura menos sectária em relação às distinções de cor e classe, privilégios e compensações, no caso específico do Brasil. 

A injustiça e a desigualdade no nosso país são sobretudo de fundo social, não racial. O fato de a população negra ser a mais atingida é circunstancial: nossos irmãos afrodescendentes provieram de uma base claramente inferior à dos “brancos”, isto é, a condição econômica de escravos. E a complicada operação de convertê-los em cidadãos na plenitude, sonhada por Joaquim Nabuco – reforma agrária, educação, etc. – não foi empreendida no devido tempo. Não a faremos agora com esmolas, como a Bolsa Família, nem com o ingresso forçado nas Universidades, como impõe a política de quotas por raças. Em ambos os casos, temos medidas paliativas, de alcance limitado e temporário.  Só a educação de base, federalizada, para todos os cidadãos pobres – negros, mulatos ou brancos – no mesmo nível das escolas para os ricos, na fórmula obstinadamente pregada pelo ex-senador Cristovam Buarque, pode constituir uma solução verdadeira, definitiva, para o problema.

Consideremos o caso das quotas.  Sabe-se que mais da metade da população brasileira é de pretos ou pardos.  Como definir os postulantes às quotas?  O critério da autodeclaração parece problemático. No Serviço Militar conheci dois praças irmãos: o cabo Amorim e o soldado Amorim, um de pele branca, outro de pele preta – o que pode acontecer quando pai e mãe são ambos mestiços. Como decidir sobre o enquadramento? O branco poderia autodeclarar-se negro?

Quando, aos dezessete anos, tirei minha primeira carteira de identidade, vinha de um intenso veraneio, e estava muito queimado de sol.  Meu identificador me rotulou de “moreno”, uma classificação atualmente proibida (hoje seria “pardo”). Muitos anos depois, ao renovar o documento, sem a cor do verão, fui classificado como “branco”.  Poderia eu, em tempos passados, em caso de necessidade, ter-me declarado negro?

Para mim, datissima venia dos defensores do sistema, tal política força uma diferenciação que não existe no Brasil.  E se um branco, pobre e necessitado – porque os há, sem dúvida – for preterido, ao tentar chegar à Universidade, por um autodeclarado afrodescendente, poderá ver nascer em si a semente da hostilidade racial, o que seria lamentável.  E nós não somos os Estados Unidos da América. Nosso “racismo” não pode equiparar-se ao deles, que gerou uma Ku Klux Klan, e restrições oficiais, do tipo “whites only” para equipamentos públicos, como bebedouros. Nós nunca tivemos nada disso.

Enfim, quotas fazem todo o sentido na dimensão social, garantindo-se vagas nas Universidades públicas, com exigências reduzidas, para estudantes pobres – negros, pardos ou brancos – provenientes de escolas públicas de nível médio, cujos padrões são sabidamente insatisfatórios. E isto apenas enquanto não se opera a reforma radical na educação de base já acima referida, a verdadeira fórmula para conquistarmos igualdade de oportunidades para todos, independentemente de raça ou de cor.  

Uma palavra final sobre o “Bolsa Família”, uma descaracterização, para pior, do original “Bolsa Escola”, que tinha a virtude de exigir um compromisso, como contrapartida dos seus beneficiários: o de manter os filhos nas escolas primárias. Agora ficamos reduzidos à pura esmola. E convém invocar aqui a sabedoria popular, na canção de Luiz Gonzaga: “Doutor, uma esmola, para um homem que é são, ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão”. Embora sendo, no atual momento político, irrecusável, não tenhamos a ilusão de, com tal espórtula, eliminar a injustiça e a desigualdade, inclusive em seus rebatimentos raciais, em nosso país.

São reflexões que nos trazem o reexame das origens e dos fundamentos da escravidão, e suas responsabilidades e repercussões sobre as mazelas sociais brasileiras.