Adolpho Bloch

Adolpho Bloch

 

Neste ano de 2022 que lá se vai (e que a mim não deixa saudades), o calendário impessoal da História marca 70 anos do dia em que, pela primeira vez, chegou às bancas de revistas cariocas uma nova publicação, atrevida e inovadora. Ela viria a marcar em definitivo a história da imprensa ilustrada brasileira: foi a revista semanal “Manchete”, criada por um judeu que nem jornalista era, chamado Adolfo Bloch para o grande público, mas nascido na Ucrânia e batizado com o nome de Avran Yossievitch Bloch. Triste, doente e abandonado, com suas empresas às portas da falência, Adolfo se foi no dia 19 de novembro de 1995 – quando a “Manchete” era apenas uma sombra do que foi – e a TV Manchete, por ele fundada, continuava ajudando a enterrar o resto da empresa.

“Manchete” foi por muitos anos a melhor revista ilustrada da América do Sul. E uma das 10 maiores do mundo em tiragem semanal. Reuniu uma equipe onde estavam os mais conceituados jornalistas do país. Alguns, naquela época, membros da Academia Brasileira de Letras, onde entraram pelo currículo e pelo talento – e não por mendigarem votos através de um acadêmico mais antigo. Outros, mais tarde, também estariam na ABL. Por exemplo: passaram pela redação da Manchete nomes como Raimundo Magalhães Júnior, Josué Montelo, Ledo Ivo, Carlos Heitor Cony, Murilo Melo Filho, Arnaldo Niskier, Cícero Sandroni e Rui Castro (todos acadêmicos), afora talentos como Ney Bianchi, Thiago de Melo, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Otto Lara  Resende, João Martins, Zevi Ghivelder, Atenéia Feijó, Heloneida Studart, José Itamar de Freitas, Lago Burnet, Paulo Pelicano, Carlinhos Oliveira, Raul Giudicelli, Rosa Freire d’Aguiar, os irmãos Rui e Creston Portiho, e outros,  muitos outros, que compunham o que havia de melhor na imprensa brasileira de então. Que era dominada pelo Rio de Janeiro, não por São Paulo, como viria a ocorrer. 

Manchete, pouco tempo depois de lançada, apagou por completo a Revista “O Cruzeiro”, editada pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, que reinou absoluta nas bancas do país por mais de 20 anos. E permitiu todas as patifarias conduzidas por David Nasser, com total apoio do patrão.

Trabalhei seis anos na Bloch, quase cinco na sede da empresa, no Rio de Janeiro, para onde fui transferido do Recife, depois de três reportagens que fiz relatando a morte do Padre Henrique, auxiliar de Dom Helder Câmara, cujo corpo foi encontrado, com sinais profundos de tortura, num terreno baldio da Cidade Universitária. Na última delas, relatei o trajeto do caixão, desde a Igreja do Espinheiro, onde dom Helder celebrou a missa de corpo presente, até o Cemitério da Várzea, onde foi sepultado já no final da tarde. Ao longo do percurso, militares do Exército e da Polícia Militar tentaram interromper o cortejo, que nunca recuou.

Na sua dor silenciosa, a multidão atravessou todas as barreiras impostas. Com o Arcebispo de Olinda e Recife à frente. E com a ameaça dos policiais atrás.

– E o que me traz de volta todas essas lembranças?

– Recentemente, andando pelo centro do Recife, encontrei num “sebo”, situado na Avenida Dantas Barreto, um velho exemplar de “Manchete”, com a foto de uma belíssima mulher na capa, como costumava fazer o Diretor da Redação, Justino Martins. Comprei a revista, não havia ali qualquer texto meu – mas estavam lá Ney Bianchi, Atenéia Feijó, Rui Portilho, Renato Sérgio, Marco Aurélio Borba, e tantos outros, além  de fotos de Walter Firmo, Orlando Abrunhosa, Gil Pinheiro e Juvenil de Souza – afora material de agências internacionais que abasteciam a Editora.

Na verdade, a empresa de Adolfo Bloch já editava, na minha época, mais de 20 títulos diferentes (Fatos & Fotos; Ele e Ela; Pais e Filhos; Amiga, Desfile, Enciclopédia Bloch,Tendência, Sétimo Céu e outras), dominava totalmente o mercado editorial de revistas. Traduzia e publicava livros de grandes autores.

Produzia centenas de milhares de apostilas para o MOBRAL, ocupando o parque industrial da empresa 24 horas por dia. A Editora Abril, em São Paulo, que se tornaria a maior do país em poucos anos, nunca foi, na época, concorrente para a Bloch. Com o velho exemplar de Manchete nas mãos, acho que uma lágrima perdida e solitária umedeceu meu rosto. Paciência… A vida era bela, para além do horizonte.

– Não há como apagar da memória a figura de “Seu” Adolfo, com seus olhos azuis e sua imensa barriga, ao lado de “Manchetinha”, a cadela que ganhou de presente e que ele adorava, como adoraria o filho que nunca teve.  Era imenso na sua devoção aos amigos – e solidário com seus funcionários, se e quando a ele recorressem. Foi assim comigo, quando minha mãe, em Campina Grande, precisou submeter-se a uma cirurgia de emergência, e eu precisei sair do Rio para acompanhá-la. Nada negou do que eu lhe pedi, e inda ofereceu passagem aérea para trazê-la desde Campina Grande até o Rio de Janeiro, com centros médicos bem mais adiantados naquela época.

Adolfo Bloch também não era “santo”.  Cometia arbitrariedades, demitia funcionários injustamente, protegia alguns áulicos que o bajulavam e lhe alimentavam o ego no cotidiano da empresa.  Era, enfim, uma pessoa humana, com suas qualidades e seus defeitos, dançando o tango imprevisto da vida.

Mas na vida de Adolfo, um fato não se pode esconder: a absoluta fidelidade que dedicava aos seus amigos, que não eram muitos. Dentre eles, certamente o mais fiel, mais companheiro, mais confidente, com quem caminhava de manhã ao longo da praia de Copacabana, foi o ex-presidente Juscelino Kubitscheck. Quando todos abandonaram e deram as costas a JK, foi Adolfo quem o acolheu, ajudou, enfrentou a ira dos militares por abrigar um inimigo do regime, fez questão de estar junto dele até o dia do desastre que vitimou o ex-presidente. Por quem Adolfo chorou – e chorou muito, junto ao féretro colocado no hall do edifício-sede da Empresa, na Rua do Russel, número 804, na Praia do Flamengo, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Juscelino tinha seu escritório particular na cobertura daquele edifício, e até mesmo sua secretária – Anna Cretsoula, uma bela jovem, filha de pais gregos – foi contratada por Adolfo e integrava a folha de pagamento da empresa.

Quando JK resolveu candidatar-se a uma vaga na Academia Brasileira de Letras – e foi covardemente traído por alguns acadêmicos a quem ajudara, e que agora lambiam as botas dos militares, e na surdina, trabalharam contra   a candidatura – Adolfo se envolvia pessoalmente no processo.

Lembro que Juscelino, já em idade avançada, decidiu que iria a João Pessoa, capital paraibana, pedir pessoalmente o voto de José Américo de Almeida, que compunha a lista dos imortais e era pai de um dos generais de maior prestígio do Exército brasileiro: Reinaldo Melo de Almeida. O ex-presidente entendia que o voto de José Américo anularia qualquer restrição dos militares à sua candidatura. Adolfo não queria que seu amigo viajasse sozinho. Eu estava presente quando ele chegou e perguntou a Fernando Luís Cascudo, diretor de uma divisão da empresa (Divisão de Novos Negócios), se ele, ex-diretor da Sucursal do Recife, não poderia acompanhar JK  nessa viagem. Cascudo respondeu que não podia: tinha compromissos agendados em São Paulo, viajaria na manhã do dia seguinte.  Adolfo apelou para o jornalista e também escritor catarinense, Salim Miguel, dos quadros da empresa e com ótimos relacionamentos no mundo intelectual da Paraíba. Salim também não podia: estava de viagem marcada para Florianópolis, onde fecharia negócios com a Universidade Federal de Santa Catarina.

Foi Cascudo quem propôs a Adolfo o nome do jornalista Ricardo Noblat, chefe da redação da Sucursal do Recife, para acompanhar, desde o Aeroporto dos Guararapes até João Pessoa, o ex-presidente JK, na sua busca por um voto que considerava estratégico. Com certa relutância, Adolfo aceitou a sugestão. Juscelino viajou para o Nordeste, desembarcou no Aeroporto dos Guararapes, foi recebido por Ricardo Noblat, que o acompanhou desde o primeiro momento até seu regresso ao Rio, depois de seu encontro com José Américo de Almeida. Na volta, elogiou para Adolfo Bloch a gentileza com que foi recebido e acompanhado por Ricardo Noblat, nesse périplo Recife-João Pessoa-Recife. 

Juscelino não entrou para a ABL, Adolfo Bloch lamentou essa tentativa frustrada, e não lembro se fez nova tentativa, novamente frustrada. Mas lembro que Adolfo elogiou Noblat pela tarefa cumprida. Hoje, quando as novas gerações foram formadas e conquistadas pelas mídias digitais, quando os veículos impressos são cada vez mais raros e serão mais tarde apenas um capítulo da história da Imprensa, essas gerações nunca terão ideia de como eram bem feitas as revistas ilustradas. A “Paris Match”,“Times” , “Life”, “Playboy”; “Der Spiegel”, “L’Europeu”  e tantas outras fizeram a fama e a fortuna de muitos profissionais. Alguns deles se tornaram lendários.

A última vez que vi Adolfo Bloch, eu já não trabalhava em suas empresas há bom tempo. Foi no Aeroporto de Brasília, final do Governo de João Figueiredo, quando, mais uma vez, foi tentar novos financiamentos do Banco do Brasil para salvar as empresas, afundadas em dívidas contraídas pela Rede de Televisão. Que levou com ela toda a cadeia de revistas produzidas pela Editora.   Adolfo estava em companhia do sobrinho Pedro Jack Kappeller, ou “Jaquito”, como sempre foi tratado no dia a dia da empresa. Ambos quase incógnitos entre as centenas de passageiros que se amontoavam nos bancos de espera. Vi um homem triste, alquebrado, com o olhar mortiço e tristonho – como se tivesse deixado em Brasília todas as esperanças. E nunca mais vi o meu antigo patrão. Fosse eu um descendente dos filhos de Israel, buscaria uma maneira de viajar até Jerusalém, caminhar silencioso até o Muro das Lamentações, e ali rezar minha prece silenciosa  por Avran Yossievitch, o imprevisível Adolfo. Pedir paz para a alma daquele judeu ucraniano, que fugiu dos “pogroms” para poder sobreviver, descobriu o Brasil e fez fortuna, perdeu tudo e não se curvou. E que não viveu para ver o seu país esquartejado, com tantas famílias fugindo da Ucrânia, como ele fugiu nos primeiros anos do século passado.