Hapiness

Hapiness

 

Instado pelo escritor André Malraux, um velho padre, com muitos anos de confessionário, “mandou a real”: as pessoas são mais infelizes do que aparentam. Fato. Certas pessoas inclusive se atolam na infelicidade com um prazer que paradoxalmente, ressignifica suas vidas. No fundo, é claro, ninguém quer ser infeliz, não obstante a condição humana apontar em sentido contrário (nesse ponto, Freud e Pascal se encontram e convergem!). Para Epicuro, que nunca foi um “epicurista”, a felicidade era o maior dos bens; só posteriormente, como se sabe, o epicurismo se tornou, por uma simplificação popular, um sinônimo de raso hedonismo! 

Émile-Auguste Chartier, ou simplesmente Alain (1868–1951), como assinava, infelizmente pouco conhecido no Brasil, talvez tenha sido um dos últimos pensadores franceses, junto com André Compte-Sponville, a refletir sobre a felicidade, trazendo-a do plano individual para o plano coletivo e social. Ao mesmo tempo que insinua que a felicidade não deve ser buscada a qualquer custo, pois surpreende quem não a procura, Alain pondera que ela é essencial e útil à construção de uma sociedade mais harmônica. Em suas próprias palavras na obra “Propos sur le bonheur”1:

“Irei até propor alguma coroa cívica para recompensar os homens que teriam tomado o partido de ser felizes. Porque, segundo minha opinião, todos esses cadáveres, e todas essas ruínas, essas despesas, essas ofensivas e precaução, são obra de homens que nunca souberam ser felizes e que não podem suportar aqueles que tentam ser”.

Em outras palavras, a infelicidade, por assim dizer militante, cria ruínas e cadáveres. Eis o fermento de Nero, de Hitler, de Putin, de Bolsonaro, de tantos homens públicos destes e de outros tempos, figuras fóbicas a qualquer espécie de felicidade, criadores de paisagens sombrias e assustadoras, incapazes, para falar como Alain, de tomar o partido de ser feliz. Também eles não suportam os que tentam ser felizes, estendem aos semelhantes, como uma rede perversa, uma amargura severa e rígida. Dispensam inclusive o bom humor, e o único humor que conhecem, quando o conhecem, é o sarcasmo, a ironia rancorosa que insulta, avilta e reduz o que é humano a praticamente nada.

Alain nos prescreve o bom humor: “Se eu tivesse, por acaso, de escrever um tratado de moral, eu poria o bom humor no primeiro plano dos deveres”.  Claro, é uma provocação, mas é igualmente a percepção de que o humor não se limita a si mesmo e de que deve estar dentre as prioridades da convivência humana. Genialmente, como que seguindo essa mesma intuição do pensador francês, Chico Anysio escreveu com graça e sabedoria: “O humor serve para muitas coisas, inclusive para fazer rir”. Não será preciso dizer que o bom humor abre caminho para uma felicidade possível, tão viva quanto desidealizada.

Ninguém deve ir necessariamente a Alain e a outros pensadores para apreciar o valor da felicidade, da alegria e do bom humor. A própria cultura popular nos diz praticamente a mesma coisa, quando transforma num xingamento feroz a palavra “infeliz”. A intuição do povo, aliás correta, é de que a pessoa infeliz irradia a infelicidade, que ela agrava o que é falha e falta numa relação interpessoal e que, de alguma forma, merece ser condenada. Nessa linha, não devemos esquecer que termos como o “O austero”, “O mal-encarado”, “O-que-não-ri”, “O sem-gracejo”, “O severo-mor” são alguns dos nomes do demônio, conforme consigna Guimarães Rosa em seu “Grande sertão: veredas”. O moralismo, sempre associado a um rigor afetado e excessivo, é outro nome para a infelicidade. Não por acaso, Proust percebeu muito bem que “Tornamo-nos morais quando somos infelizes”, como se lê em “À sombra das raparigas em flor”.

Volto a Alain uma última vez. Ele nos dá uma dica para amenizar a nossa infelicidade generalizada. Deixo aqui, à guisa de fecho, suas palavras como dica e desejo de feliz ano novo para leitoras e leitores: “Se você tivesse um amigo e se ele se lamentasse amargamente de todas as coisas, você tentaria sem dúvida o acalmar e o fazer ver o mundo sob outro aspecto. Por que não seria você um precioso amigo para si mesmo?”.

 

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