A militância de esquerda conhece bem esta frase de Mao Tse Tung (ainda uso a grafia antiga). Foi em uma reunião com o secretário geral do PCURSS, em Pequim dos anos cinquenta. Menosprezando o poderio militar dos Estados Unidos, Mao teria dito: “o imperialismo é um tigre de papel”. E Khrushchev teria retrucado: “sim, mas tem dentes atômicos”. “Tigre de papel” é uma expressão chinesa que se refere aos bonecos usados nas festas do ano novo lunar, o Tet, carregados por populares pelas ruas e que, na tradição chinesa, servem para espantar os maus espíritos.
Não sei a origem da expressão “gigante de pés de barro”, mas o significado é o mesmo da blague maoísta. Ou seja: muita ameaça e pouca força.
Lembrei destas expressões ao começar a escrever sobre Bolsonaro. O capitãozinho, na verdade um tenente promovido ao ser discretamente expurgado das fileiras do exército para uma confortável reserva remunerada, foi alçado à categoria de “mito”, quando ainda era deputado federal, eleito pela enorme base de milicos do estado do Rio de Janeiro. Não consegui saber quando, exatamente, este epíteto foi lançado, talvez quando o escatológico deputado de dois projetos de lei em 30 anos de mandato, obscuro até na obscuridade do baixo clero da Câmara, começou a aparecer nas manifestações de 2013. Quem assim o batizou e todos os que passaram a assim chamá-lo, com gritos de admiração embasbacada, não devem saber o que significa mito. Mito tem como sinônimos as palavras fábula e lenda. Ou “interpretação ingênua do mundo”. Há outras leituras mais gloriosas, mas esta me parece mais de acordo com o personagem e seus seguidores.
O “mito”, de fato, teve e tem papel de símbolo. Ele personifica uma série de valores negativos que são assumidos por uma parte do nosso povo bem maior do que poderíamos acreditar. Misógino, homofóbico, racista, covarde em duplo sentido (agressivo com os mais fracos e tímido com os mais fortes), falso moralista (corrupto que brada contra a corrupção), falso religioso (reza conforme a crença de ocasião), desleal (abandona aliados sem piscar), oportunista (esteve em 9 partidos), falso machão (autoproclamado “imbrochável”), falso patriota, (subserviente ao seu mito americano, Trump), ignorante orgulhoso da sua ignorância, grosseiro, boquirroto, escatológico, insensível com o sofrimento alheio (imitou um doente morrendo sem ar), anticientífico (defendeu a cloroquina e combateu as vacinas), inimigo do meio ambiente (favoreceu a maior destruição de todos os biomas brasileiros com desmatamentos e queimadas ilegais). A lista é longa e incompleta. Mas o mais importante são os valores políticos que o energúmeno adquiriu. Adepto da ditadura, da tortura, defensor do extermínio dos que considera comunistas, socialistas ou esquerdistas (e isto inclui todos com quem tem diferenças de opinião), favorável à censura da imprensa e das artes. Favorável a um poder ultracentralizado e estatista do ponto de vista econômico, Bolsonaro adotou (mais da boca para fora) a defesa do liberalismo por puro oportunismo. A lista também é longa e incompleta.
Bolsonaro foi sendo abraçado por saudosistas da ditadura que estavam abafados na surdina da redemocratização. Gente que não ousava assumir esses “valores” em público e encontrou no “mito” a expressão das mesmas mazelas morais e políticas. Este público veio crescendo e se assumindo a partir da crise do governo de Dilma Rousseff, da decepção com o PT, que já foi identificado como o partido da ética na política, com a erosão da militância de esquerda e o crescimento da “militância” evangélica.
Galgado a uma notoriedade popular nas manifestações pelo impeachment de Dilma, Bolsonaro passou a ser visto como uma alternativa de poder para as eleições de 2018 e a receber o endosso do estamento militar que o tinha rejeitado nos anos 80. O que hoje se chama de “partido militar”, constituído pela oficialidade que se ressente da perda do poder dos tempos da ditadura, passou a vê-lo como um instrumento da “volta do cipó de aroeira no lombo dos democratas”. Por outro lado, os “liberais” da nossa elite escravocrata, que nunca fizeram a leitura da relação entre liberalismo econômico e liberalismo político e que podem engolir qualquer arroubo liberticida em nome do mercado, aderiram ao candidato antipetista com alegria. Tanto os militares quanto a elite empresarial viram em Bolsonaro um boneco, bronco e tosco, é verdade, mas adequado para ser usado na luta política.
E foi assim que chegamos à tragédia final ou quase final (nos livramos dela pelo fotochart eleitoral em outrubro passado): a vitória eleitoral do energúmeno em 2018, com direito a ameaças militares e subserviência do STF para tirar Lula da campanha. Uma vez no poder, o boneco passou a ter vida própria e a pôr em prática a sua agenda do coração. Desde a posse o energúmeno militou para enfraquecer as instituições democráticas, começando pelos processos eleitorais que o levaram ao Planalto. Domou a PGR, submeteu a PF e a PRF, fragilizou os mecanismos de controle da corrupção, enfrentou o STF, atacou a imprensa tradicional, atritou-se com o Congresso. A estratégia era simples, até simplória como o personagem. Não importava ganhar ou perder os embates com os vários inimigos, mas mostrar para a sua base que não o deixavam governar. Com isto ele se livrava de … governar. Tudo que dava errado era culpa dos outros (Supremo, mídia, governadores, Congresso). Na estratégia de Bolsonaro esteve presente a formação de um movimento totalmente baseado na criação de falsas notícias na internet e que foi contaminando o debate político ao longo dos 4 anos de desgoverno. São dezenas de milhões de pessoas que ignoram toda fonte de informação que não tenha origem no “gabinete do ódio” e que se articulam de forma permanente para atacar por todas as formas, morais e físicas, os que não rezam pela cartilha do energúmeno.
Na agenda de Bolsonaro o mais importante era fortalecer seu apoio entre os que poderiam levá-lo ao poder absoluto: as FFAA, as polícias militares e as milícias que ele foi armando sem limites até chegar a um número recorde de supostos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), 700 mil militantes armados (e bem armados), organizados em clubes de tiro.
O mais perigoso dos movimentos de subversão promovidos por Bolsonaro foi a politização das FFAA. O energúmeno trouxe para o governo mais de 7 mil oficiais, espalhando-os em vários ministérios sem qualquer relação com a competência necessária para os cargos ocupados. Concedeu imensas vantagens à oficialidade na reforma da previdência, enquanto outros setores assistiam à perda de direitos. Garantiu verbas extraordinárias para as três armas comprarem navios, aviões e tanques para brincarem de soldadinhos, enquanto todos os outros ministérios passavam por cortes de verbas tão drásticos que paralisaram programas na saúde, educação, ciência, meio ambiente, serviços sociais, transportes, cultura e outros. Mas o mais grave foi o permanente estímulo às manifestações políticas de oficiais de todas as patentes. Seguindo o exemplo dos mais altos cargos das FFAA, a oficialidade se meteu a dar opinião em políticas as mais variadas através da mídia eletrônica.
Alguns acham que o chamado “partido militar” é idêntico ao conjunto das FFAA e que estas atuam segundo uma lógica política articulada. Não acredito nisso. O termo “partido” implica em algo diferente do que ocorre. Não há, como nos partidos políticos, a construção de propostas a serem defendidas pelo conjunto. Pode-se dizer que há uma ideologia comum, o anticomunismo, que hoje tem a roupagem do antipetismo. Mas os acordos sobre o que fazer para afirmar o poder dos militares não existem. Há uma notória clivagem entre os oficiais superiores e os chamados comandos de tropa. Os primeiros mostraram que estão prontos para chantagear os “comunistas” vitoriosos nas eleições para manter seus privilégios. A agenda da generalada é manter o controle do aparato militar, indicando o ministro da Defesa que os agrade e escolhendo os comandantes das três forças. Também querem manter o controle das promoções dos oficiais superiores. E querem manter todas as vantagens adquiridas no governo Bolsonaro, inclusive gordos orçamentos. Além disso, não aceitam qualquer interferência no conteúdo da formação de novos oficiais, garantindo a reprodução da ideologia reacionária para o futuro.
Já a oficialidade média, coronéis, majores, capitães e tenentes, tem outra agenda, muito mais radical. Estes são os que não aceitam a posse de Lula e confraternizam com os manifestantes golpistas na porta dos quartéis. Estes são os que fizeram circular um manifesto apócrifo (que muitos analistas consideram representativo desta oficialidade) pressionando seus superiores para “tomarem uma atitude”. Leia-se: assumam a direção de uma movimento para impedir a posse.
O resultado desta mixórdia é o fim da disciplina nas FFAA e a ascensão do radicalismo fardado na política brasileira. Lembra (no sentido inverso) o momento do governo de Geisel, quando este descobriu que os “porões” do regime militar disputavam o poder com ele, o presidente, também comandante das FFAA. Geisel promoveu o desmonte da “tigrada” e passou a aplicar uma estratégia que levasse ao desengajamento das FFAA do centro da política. Foi o que se chamou de abertura (“lenta, gradual e segura”, no dizer do ditador de plantão), que foi acelerada e expandida no governo Figueiredo pela pressão das forças democráticas.
A questão imediata é quem vai levar vantagem nesta anarquia militar, a generalada ou os comandos de tropa. O mais provável é que as manifestações abertas (e, sobretudo, as veladas, internas) não sejam capazes de levar os comandos superiores a se arriscarem em uma aventura golpista. Sobra a alternativa mais radical e subversiva, os comandos de tropa se mexerem para impedir a posse.
Esta hipótese tem um ponto fraco fundamental: nunca ocorreu no país um levante militar que não fosse dirigido/liderado por oficiais superiores. Muitos movimentos precisaram de um chefe, mesmo que simbólico, com graduação superior. Em um dos momentos de maior ruptura da hierarquia, o golpe contra a posse de Jango em 1961, assistimos a um general comandante de uma região militar enfrentar os golpistas em nome da legalidade. Os ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica e todos os comandantes das outras regiões militares estavam com o golpe, mas bastou que um comandante se opusesse com firmeza (apoiado pelos poderes civis e pela população do Rio Grande do Sul, mobilizados pelo governador Leonel Brizola) para buscarem uma solução negociada que evitasse o combate. Mas uma rebelião comandada por coronéis contra seus oficiais comandantes ainda não ocorreu. Para que isso ocorra é necessário que apareça uma liderança militar que centralize decisões, iniciativas e comandos.
E esta é a questão chave do momento. Bolsonaro não é um líder, ele é um símbolo de uma ideologia e de um comportamento. Liderança é outra coisa: é autoridade moral, capacidade de articulação, poder de decisão e ousadia. Bolsonaro não é nada disso. Quando o alto comando do Exército puxou o seu tapetinho, ele “botou o galho dentro” e foi chorar no banheiro. Onde está até agora. Seus seguidores tomaram iniciativas, bloquearam estradas, cercaram quartéis, atacaram democratas individualmente e instituições da República, com cada vez mais violência criminosa. Sem apoio do “mito”, calado, temendo o momento em que vai perder o escudo defensivo de Aras. Não, este garnisé não é um líder revolucionário, e todo este movimento golpista está precisando de um. O tigre de papel se dissolveu na chuva, o gigante de pés de barro caiu com o próprio peso das expectativas que gerou nos seus fanáticos.
Há quem considere que Bolsonaro e/ou o “partido militar” não tem suporte político para dar um golpe. É verdade, se nos ativermos ao apoio dos políticos. Apenas os mais fanáticos bolsonaristas eleitos no último pleito topariam votar um estado de sítio, a anulação da eleição de Lula (nunca o primeiro turno, é claro) ou qualquer outra medida excepcional. Mas o golpismo conta com a massa dos bolsomínions, cuja vanguarda se esfalfa na porta dos quartéis. Não são todos os que votaram no energúmeno. Uma pesquisa interessante, cruzando a adesão às posições de Bolsonaro ao longo do seu governo, aponta para uma porcentagem de 12 a 15% do eleitorado que dá total aprovação a qualquer medida tomada pelo presidente. Parece pouco, mas são, em números redondos, entre 19 e 24 milhões de fanáticos, organizados em grupos de zap, orientados pelo gabinete do ódio. Gente capaz de fazer muito barulho nas ruas e praças. Por outro lado, Bolsonaro conta com o apoio de setores do empresariado, com ampla maioria entre os médios e pequenos, mas também com alguns pesos pesados, sobretudo no agronegócio. Não é pouca coisa para respaldar um movimento golpista.
Aparentemente, Lula e a frente democrática vitoriosa nas eleições contra a proposta fascista estão negociando com a generalada. Os oficiais generais estão chantageando o Lula usando a ameaça dos quartéis semi-sublevados. Tipo: aceitem nossas condições e dissolvemos as manifestações nos quartéis. Resta saber se serão obedecidos pela coronelada dos quartéis, cujo jogo político, como disse acima, é mais radical, e pretende evitar que Lula “suba a rampa” do palácio do Planalto.
Mesmo supondo que os generais sejam obedecidos, ficará estabelecida a tutela das FFAA sobre o Executivo. E a bomba de efeito retardado de toda esta indisciplina vai ficar esperando a hora de explodir.
Lula não tem muitas alternativas. Se peitar os generais, empurra-os para os braços dos coronéis golpistas. Pode ser que os comandantes miem na hora de chamar a insurreição e engulam o cheque-mate do metalúrgico. É até mais provável que assim se dê. Para isso contribui o peso da oposição internacional a um golpe no Brasil. Um golpe que, se acontecer, será, provavelmente sem Bolsonaro. O regime que se estabeleceria com um golpe militar teria vida breve e tumultuada, isolado internacionalmente e submetido a pressões econômicas e diplomáticas.
Se Lula engolir a chantagem, nada garante que o clima golpista se dissolva por ordem dos generais, embora isto seja mais provável no imediato. O problema é que isto adia o confronto sem evitá-lo.
A meu ver, o que pode mudar a correlação de forças no presente momento é uma demonstração de apoio popular tipo monstro. Uma posse de Lula com o país mobilizado em cada cidade e aldeia, com milhões de manifestantes entusiasmados, pode dar cacife para Lula peitar a milicada já no começo do governo.
Preocupa-me o fato de nem Lula nem as forças democráticas que o apoiam estarem preparando esta apoteose nacional. Sim, a Janja está organizando uma grande festa em Brasília, mas o caráter desta manifestação é mais comemorativo do que de afirmação política. Vai ser preciso muito mais para dar um breque no golpismo. Pelo menos para contê-lo enquanto ele começa a governar. As massas comparecendo em todo o país, em grandes números e com grande combatividade, são o único anteparo ao alcance de Lula. É preciso preparar politicamente esta mobilização, apelando para a defesa da democracia e da legalidade. O clima da transição, voltada até agora exclusivamente para decidir ministérios e algumas propostas de políticas públicas, está deixando de lado a ameaça golpista, acreditando que ela vai dar xabu, sem maiores problemas para o futuro governo. Estamos navegando em águas escuras e tumultuosas, que implicam riscos gigantes para o futuro do regime democrático.
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