A virada política do Brasil neste início de ano transmite uma sensação misturada de alívio e preocupação. Alívio com o final do desastroso governo de Jair Bolsonaro, e preocupação com os sinais contraditórios do novo governo, declarações e discursos carregados da arcaica linguagem populista. A posse do Presidente Lula da Silva foi uma vitória da democracia, derrotando as pretensões golpistas dos bolsonaristas e consolidando as instituições democráticas. Deste ponto de vista, o Brasil respira aliviado e espera a pacificação política do país e a reconstrução nacional. Os brasileiros não aguentam mais as tensões permanentes e os confrontos alimentados pela polarização política dos últimos anos. Mas deve-se perguntar se o novo governo está à altura dos desafios econômicos, sociais e ambientais.
Nos dois discursos de posse, Lula manifestou sua indignação e a sincera preocupação com a fome, a pobreza e as desigualdades sociais, e declarou que o seu governo iria enfrentar este drama social do Brasil. Os propósitos são justos e generosos. O problema são os meios. Como o presidente pensa em enfrentar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais? A transferência de renda, que tem sido sempre destacada por Lula, pode dar um alívio imediato aos brasileiros pobres e esfomeados, mas é um paliativo, e não muda a realidade social do Brasil. Mesmo quando condicionada pela frequência escolar dos filhos, a transferência de renda tem efeito limitado, se não for acompanhada de uma significativa melhoria das precárias escolas públicas.
Além do mais, a pobreza e as desigualdades não podem ser medidas apenas pela renda, se se expressam também na grave escassez de serviços públicos, principalmente saneamento. Cem milhões de brasileiros não têm esgoto, vivendo em condições precárias, que comprometem a qualidade de vida e a saúde, atrapalham a produtividade do trabalho e o rendimento escolar das crianças e jovens.
Passadas as simbologias da posse e as promessas dos seus discursos, o presidente tem agora o desafio de governar o Brasil, um país tão complexo, que combina a mais avançada tecnologia com arcaicas relações sociais, um país fortemente integrado ao mundo globalizado. Para alcançar os fins propostos, o presidente não pode governar com os conceitos e as políticas do século passado, menos ainda com as mesmas ferramentas que utilizou no seu primeiro mandato presidencial.
Para definir a estratégia do governo, Lula deveria começar fazendo um novo diagnóstico do seu primeiro mandato, para entender melhor o que houve de sucesso e, principalmente, o que permitiu os avanços. A tão propalada redução da pobreza do seu governo não foi resultado das políticas sociais, menos ainda, da transferência de renda do Bolsa Família, foi uma consequência direta do crescimento da economia no período, com a geração de emprego e a elevação da renda da população. Mérito do presidente Lula, que soube, com reconhecida coragem política, abandonar a pulsão gastadora do PT e manter a política econômica de Fernando Henrique Cardoso, incluindo o demonizado ajuste fiscal. Mas também muita sorte, porque o seu governo coincidiu com um dos ciclos mais longos de crescimento da economia mundial, puxado, principalmente, pela expansão desenfreada da China, que arrastou a nossa economia.
Se foi o crescimento econômico dos primeiros anos (em torno de 4% ao ano) o principal determinante da retirada de 30 milhões de brasileiros da pobreza (claro que não o único), a estagnação dos anos recentes é a causa central do aumento da pobreza e da fome no Brasil, e da dolorosa situação atual. São 8 anos de estagnação e uma recessão dramática nos anos finais do governo de Dilma Rousseff, que levaram a este estado lamentável de pobreza e fome. Não foi a falta de transferência de renda, que continuou, até aumentou no período recente. Assim, embora seja urgente a transferência de renda para aplacar a fome, a retomada do crescimento econômico é a condição fundamental para a redução sustentada da pobreza, da fome e mesmo das desigualdades sociais. E, ao contrário do que sugerem alguns economistas ligados a Lula, não é com o aumento das despesas primárias que o governo poderá estimular a retomada do crescimento da economia, simplesmente porque o Brasil padece de enorme restrição fiscal, e o descontrole de gastos leva ao risco de inflação e elevado do endividamento, gerando aumento das taxas de juros e desconfiança dos agentes econômicos. A retomada do crescimento econômico depende, antes de tudo, da ampliação dos investimentos privados, não apenas nas atividades produtivas, mas também na infraestrutura econômica, e mesmo na infraestrutura social, como o saneamento. Neste aspecto, existe o receio de o novo governo modificar o Marco Legal do Saneamento, que abre espaço para investimentos privados na coleta e tratamento de esgoto.
Quando afirmou, no discurso de posse, que o Teto de Gastos é uma estupidez, Lula parece informar que pretende mesmo ampliar as despesas primárias para além do que já foi autorizado com a PEC da transição. Talvez seja mesmo necessário um aprimoramento da âncora fiscal, na medida em que o teto de gastos perdeu força, porque não foram realizadas as reformas estruturais que diminuiriam as despesas primárias, principalmente a reforma administrativa. Mas Lula não faz nenhuma referência a medidas para contenção da inércia de expansão das despesas primárias, e já começa o governo com a sua elevação, através da promessa do aumento real do salário-mínimo, com grande impacto na Previdência Social, e a ampliação significativa dos ministérios, e dificilmente irá ceder às pressões dos servidores públicos para aumento dos salários.
No seu terceiro mandato presidencial, Lula parece não ter entendido as grandes transformações na economia e na sociedade (incluindo o mundo do trabalho), quando fala em reformular a lei trabalhista e em suspender as privatizações, e não percebe a integração da cadeia de valor em escala global, quando afirma que “não faz sentido o país importar combustível, fertilizantes, plataformas de petróleo e aeronaves”. Parece estranho (ou preocupante) que prometa a suspensão das privatizações e, ao mesmo tempo, pretenda promover uma mudança na lei das estatais, para flexibilizar as suas regras avançadas de gestão, que garantem a competência dos dirigentes e dificultam a politização das corporações (para não falar em corrupção). Os discursos de Lula ainda sugerem uma pretensão oculta de reduzir a participação de acionistas privados nas empresas estatais, quando fala que “os recursos do País foram rapinados para saciar a estupidez dos rentistas e de acionistas privados das empresas públicas”. Ora, presidente, o setor privado detém 63% das ações da Petrobrás, o que significa que a poupança privada financia grande parte dos investimentos e da operação da empresa. Não fica claro se é apenas uma frase de efeito para agradar e mobilizar seus seguidores estatistas, ou se, de fato, o presidente pretende estatizar as empresas públicas de capital aberto (em qualquer caso, felizmente inviável, porque o Tesouro não tem recursos para isso). De qualquer modo, como o futuro presidente da Petrobrás anunciou que vai rever a política de paridade de preços da corporação, pode ser que Lula venha a adotar a bravata de Ciro Gomes: “se os acionistas não gostarem, eu compro as suas ações”.
O certo é que a posse do novo presidente despertou muita esperança no povo brasileiro, livre, finalmente, do desastre de Bolsonaro. A composição do ministério e algumas outras declarações indicam que teremos avanços significativos no meio ambiente, na saúde e na educação e, por mais que erre, este governo ainda será melhor que o anterior. Mas, a julgar pelo que se tem dito, pode levar a um desmantelo na economia. E as maiores vítimas serão os pobres que Lula tanto cita, e pretende, sinceramente, proteger. O mais grave é que um fracasso deste governo, além de desorganizar a economia, reacenderá a polarização política, e pode abrir o caminho para a volta do bolsonarismo ao poder.
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