Two Men by the Sea  by Caspar David Friedrich

Two Men by the Sea by Caspar David Friedrich

 

Um terço do cérebro humano é dedicado à visão, tal o primado desse sentido para a nossa espécie. “Sou do tamanho do que vejo”, escreveu Fernando Pessoa pela pena de Alberto Caieiro. Sobre o tema, infinitas citações poderiam ser desfiadas como fibras de um mesmo fruto. Aqui, queremos apenas nos ater a uma inflexão desse tema: olhar ao longe. Quem nos inspira é o sempre inspirado Alain (Émile-Auguste Chartier, 1868–1951), mestre de grandes nomes da cultura francesa, cujas palavras quase sempre são tocadas de sabedoria e ótimos “insights”.

Num de seus curtos e afiados “Propos”, de maio de 1911, “Olhe para longe”, Alain já inicia incisivamente: “Ao melancólico, não tenho mais que uma coisa a dizer: ‘Olhe para longe’”. Não, o pensador francês não está falando metaforicamente, como poderíamos esperar de alguém atento às coisas do espírito, mas literalmente. O melancólico em questão, diz ele, é quase sempre um homem que lê muito, observação em que todos nós podemos reconhecer o tema bíblico do sábio entediado… Mas Alain logo aponta que o olho humano não foi feito para a curta distância física que a leitura nos impõe, pois nossos olhos só repousam bem nos vastos espaços quando, então, diz ele, “tudo em nós se suaviza e se distende até as vísceras”.  De minha parte, não duvido de que a neurociência confirme a intuição do escritor francês, uma vez que a proximidade com a natureza é reconhecidamente benfazeja aos nossos neurônios. Alain, com efeito, pensa no horizonte marinho e nas estrelas, enfim nos vastos espaços.

Ainda segundo o filósofo, nossos olhos, ao repousarem nos amplos horizontes, nos ensinam uma grande verdade: a de que o pensamento libera o corpo ao universo, “nossa verdadeira pátria”. O destino humano e as funções do corpo têm um parentesco. Enquanto o animal, prossegue o pensador, com as “coisas vizinhas deixando-o em paz”, deita e dorme, o ser humano pensa, multiplicando seus males e suas necessidades; com o corpo, por sua vez, agitando-se conforme os movimentos vivos da imaginação. Enfim, “[…] o pensamento se faz uma prisão, e o corpo sofre”. Em poucas palavras, Alain nos avisa: “[…] é preciso que o pensamento viaje e contemple, se quisermos que o corpo esteja bem”.

Não será por acaso que tão bem nos sentimos ao contemplar os vastos panoramas. E por certo, por mais que amemos nossa própria casa, temos o desejo natural de dela sairmos para outros e novos espaços. Os mirantes artificialmente construídos não fazem mais que repetir, do ponto de vista da intencionalidade humana, o prazer visual que sentimos ao de fato mirar com vagar (se assim dizer não é redundante) a natureza, que, de resto, sempre dá um jeito de se mostrar especial ao próprio ser humano. Nesse contexto, para ficar num exemplo brasileiro e emblemático, vale lembrar o caso do Cristo Redentor.

É evidente que o Corcovado é por si mesmo muito melhor e mais sedutor do que a prosaica estátua do Cristo. Não blasfemo. E não admira que, no mesmo local, no seu topo, já os cariocas tivessem construído um grande mirante: o Chapéu de Sol. Subir ao Cristo pouco tem de devocional, por mais que os religiosos queiram e pensem assim. Naturalmente, não esqueço aqui, nas pegadas do mestre Mircea Eliade, em seu “Tratado de História das Religiões”, que há, naquele famoso logradouro carioca, como de resto nos lugares altos, um simbolismo ascensional: “A ‘altura’, o ‘superior’ são assimilados ao transcendente, ao ‘sobre-humano’ […] a sacralidade da ‘altura’ é válida pela sacralidade das regiões atmosféricas superiores, portanto, em última instância, pela sacralidade do Céu”.

À parte essa relação cósmica com o sagrado, subir ao Cristo é, de fato, “olhar para longe”, é seguir a nossa própria e atávica natureza. Do alto, como sabemos, o espetáculo é ainda mais expressivo por misturar a natureza e a urbe, a cultura e o cosmos. Como bons primatas, é com a visão que nos sentimos mais partícipes do universo: ele nos interessa porque o vemos e o integramos. Para outras espécies, são bem outros os interesses, como provam nossos amigos os cães. Para eles, um belo panorama e coisa nenhuma são a mesma coisa, o que lhes toca são os cheiros, os ares, os perfumes, todo um mundo invisível que eles podem, por assim dizer, apalpar e ver (!) com o seu fantástico olfato. É de se ter pena, portanto, desses cães que saem a passear puxados como meros objetos, sem poder desfrutar sem pressa os cheiros de que precisam para se sentirem vivos e até partícipes de uma comunidade de iguais. Deixem que seus cães funguem, que aspirem profundamente os cheiros da terra, dos postes e, sobretudo, de outros cães! Deem a eles tempo de serem cães! Duvido que alguém só queira passar poucos segundos no alto do Corcovado!…

Alain está certo: devemos e precisamos olhar para longe! Está em nossa natureza! Não poucas soluções nos aparecem ao sentirmos o “relax” a que se refere o autor francês. Nós, humanos, carecemos de sorver e saborear vastos espaços. O estresse, assim, não parece ser outra coisa senão um cerco irracional de muitas pressões, algumas delas agarradas a nós como sanguessugas. Precisamos do ar livre das paisagens. Precisamos aqui e ali, na medida do possível, libertar a vista do jugo habitual de telas, páginas, paredes e paredões, de portas fechadas que nos negam o espaço. Olhemos para longe!