Papa João 23

Papa João 23

 

Em uma de suas mais conhecidas obras, “Homens em tempos sombrios”, Hannah Arendt, ao traçar o perfil do papa João 23 (Giovanni Roncalli), lembra a humildade e o bom humor que o caracterizavam. Lembra como todas as pessoas “[…] do taxista ao escritor, do garçom ao balconista, fiéis e infiéis de todos os credos, tinham uma história para contar sobre o que Roncalli fizera ou dissera, como se conduzira em tal ou qual ocasião”. Muitas dessas historietas e anedotas foram até reunidas em livro, “Um papa ri”, pelo escritor Kurt Klinger, aliás traduzido no Brasil. Arendt conta algumas.

As evocações da filósofa terminam por desenhar um papa moderno. O primeiro e até agora insuperado papa moderno,  ao qual jamais faltou, a tomarmos Baudelaire como um farol, um tempero essencial da modernidade: a ironia.

Um episódio, não dos mais escancaradamente risonhos, vale como uma aula de verdadeira autoajuda, se dessa palavra extrairmos o veneno comercial e vulgar. Ao ser eleito papa, Giovanni Roncalli confidenciou a amigos que “[…] as terríveis novas responsabilidades do pontificado incialmente o preocuparam intensamente e até lhe provocaram noites de insônia — até que, numa manhã, disse a si mesmo: ‘Giovanni, não se leve tão a sério!’, e desde então sempre dormiu bem”.

“Não se levar tão a sério”, para Arendt, significou um gesto de humildade. A humildade é leve por natureza: ela, por assim dizer, expulsa o peso quase inarredável do amor-próprio e da vaidade. Em sua natural simplicidade, João 23 assustou-se com a carga do poder. Vislumbrou angústias e tensões, mas de uma forma jocosamente estoica, também viu que estava em sua capacidade pessoal transformar toda aquela carga numa bagagem mais leve. Não podia mudar o mundo à sua volta, mas podia mudar a si mesmo.

Por que diabos (se podemos usar essa expressão num artigo que fala de um papa!) temos que levar a sério tanta coisa sem graça? E por que diabos nos levamos tão a sério que não vemos a desgraça que fazemos a nós próprios? Tornamo-nos patéticos, além de estressados, quando a seriedade congela a flexibilidade da vida. O amor-próprio (sobretudo se hipertrofiado) é um dos mais fiéis companheiros da Loucura, como assinalou Erasmo de Rotterdam em seu clássico “Elogio da Loucura”. Por outro lado, o amor-próprio dita malignamente a vida em sociedade, como percebeu La Rochefoucauld. O amor-próprio nos sussurra, quando não grita, que nos levemos muito a sério. Terminamos por achar que, se não nos levarmos a sério, os outros não nos levarão a sério. Não parece que tenha sido o caso de João 23! (e, claro, de muita gente boa).

“Nada é tão difícil quanto não se enganar a si próprio!”, escreveu Wittgenstein. Levar-se muito a sério, por outro lado, é tão fácil que mal nos damos conta de que assim fazemos quase o tempo inteiro. Talvez por uma espécie de herança neurocerebral, por  um signo biológico remanescente da luta ancestral pela vida, trazemos conosco a seriedade de quem se prepara para árduas batalhas e terríveis perigos. Portanto, nada de riso, nada de leveza e de graça, sobretudo se estamos nas oficiais esferas do poder. Não por acaso já tanto se comentou sobre a intestina tristeza do poder.

Não se levar tão a sério pode ser difícil para muitos e implica, de alguma forma, desenganar-se. Erasmo, acima já citado, em seu “Elogio da Loucura”, ironicamente pondera: “Dizem os sábios que é um grande mal estar enganado, eu [é a Loucura quem fala], ao contrário, sustento que não estar é o maior de todos os males. É uma grande extravagância querer fazer consistir a felicidade do homem na realidade das coisas quando essa realidade depende exclusivamente da opinião que dela se tem”. Enfim, com sua autoironia, João 23, ao se desenganar de si, não se levando tão a sério, pôde enganar e mitigar uma pesada realidade que o cercava. E pôde passar a dormir bem. Como se sabe, dormir bem é uma das melhores coisas da vida, sem deixar, de certa forma, de ser também um desengano da própria realidade.