O presidente Lula da Silva é um homem objetivo e de soluções fáceis, mesmo para os mais complexos problemas da humanidade. Se os líderes mundiais o ouvissem, a guerra da Ucrânia já estaria resolvida e a paz retornaria ao Leste Europeu. Bastava a Ucrânia parar com a resistência à invasão russa, afinal, como disse o presidente Lula, “dois não brigam quando um não quer”. Sem a teimosa resistência ucraniana, as tropas russas avançariam rapidamente, sem mortos nem destruição, tomariam Kiev, derrubariam o governo eleito de Volodimir Zelensky e, no seu lugar, instalariam uma marionete. Até que anexasse o país à Federação Russa, como desejava Putin, voltando a ser parte do império russo.
Como os ucranianos, claro, não querem ser subjugados pelos inimigos russos, depois de séculos de dominação do império tzarista e de décadas de violência do stalinismo, o plano de paz de Lula se volta para os aliados da Ucrânia. Segundo ele, os Estados Unidos e a União Europeia deveriam suspender o apoio diplomático e militar, abrindo caminho para a derrota da resistência ucraniana. As tropas russas demorariam mais um pouco na sua penetração pelo território, mas, em poucos meses, a Ucrânia estaria dominada e, finalmente, não teríamos mais guerra. Não é lindo?
O pacificador Lula repetiu essa ideia nos últimos dias, mas os líderes mundiais insistem em ignorar a solução rápida e fácil do conflito bélico no Leste Europeu. Lula afirmou que a Ucrânia não está interessada na paz e que os Estados Unidos e a União Europeia estão incentivando a guerra. Segundo ele, a “decisão da guerra foi tomada” pela Rússia e pela Ucrânia, o invasor e o agredido decidiram brigar, e os Estados Unidos precisam parar “de incentivar a guerra e começar a falar em paz”. Apenas os governos da China e da Rússia demonstram interesse nas sábias palavras do presidente Lula, nas suas propostas brilhantes de solução do conflito bélico que, em última instância, espera que o país invadido abra as portas para o invasor e aceite a dominação do império Putin.
Benevolente, o The Economist vê ingenuidade nessas iniciativas de paz de Lula: “ao se esforçar demais para desempenhar o papel de pacificador global, Lula corre o risco de parecer ingênuo em vez de um estadista experiente”. Não, Lula pode ser tudo, menos ingênuo. Na verdade, Lula tem a intenção, bem ousada, de emergir como um grande estadista mundial, utilizando o bloco dos BRICS como a sua plataforma política. Nessa viagem à China, ele errou na dose, foi traído por um primário e antiquado antiamericanismo, tentando resgatar o terceiro-mundismo do século passado, desta vez se alinhando a uma das grandes potências, a China. Pensando que ganha a China para os seus propósitos, Lula leva o Brasil a ser um “peão no Grande Jogo chinês” (segundo o Estado de São Paulo). O presidente Lula poderia ser mesmo um mediador nesta guerra se mantivesse a equidistância e, principalmente, se soubesse distinguir o agressor da vítima. Com essas declarações e posições que vem assumindo e que enfatizou nesta viagem, ele jogou fora qualquer legitimidade e confiabilidade, aparecendo quase como um simpatizante da Rússia.
Do ponto de vista diplomático, as várias declarações de Lula nessa viagem à China foram desastrosas, abrindo tensões desnecessárias com os outros parceiros econômicos do Ocidente. As falas do presidente foram rejeitadas duramente pelos Estados Unidos e pela União Europeia e, em Portugal, para onde ele viaja no final mês, já houve manifestações de insatisfação com a sua participação nas festividades dos 50 anos da Revolução dos Cravos. Diante dos protestos, um recuo tímido, defendendo a integridade territorial ucraniana. Além de tímida, a declaração chega tarde e não recupera uma imagem de mediador confiável. Os protestos ocorrem no mesmo dia em que o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, visitando o Brasil, declarou que os dois países tinham visões coincidentes em relação à Ucrânia. O chanceler brasileiro não contestou esta coincidência de visões, não condenou a invasão da Ucrânia, como está na declaração das Nações Unidas que o Brasil assinou, e ainda criticou as sanções econômicas porque não foram aprovadas pelo Conselho de Segurança, no qual têm veto a China e a própria Rússia. Em compensação, Lula conseguiu que a Rússia declarasse o apoio à oficialização do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança, antigo sonho do presidente brasileiro.
Esta é uma guerra de resistência de uma nação invadida por uma potência nuclear, cujo presidente tem claras pretensões hegemônicas na região e sempre considerou que a Ucrânia é parte integrante da Rússia. Por isso, os países que defendem a autonomia dos povos e a integridade territorial das nações têm que reconhecer e apoiar diplomaticamente a resistência do povo ucraniano e exigir a retirada das tropas russas da Ucrânia. Como diz Demétrio Magnoli “se a Rússia parar de combater, a guerra acaba; se a Ucrânia parar de combater, a Ucrânia acaba”.
Volto a comentar este tema, já abordado nesta revista, com duas perguntas e quatro afirmações.
1) Alguém acredita que a Ucrânia pode ganhar esta guerra?
2) Quando, após a dissolução da URSS, foi extinto o Pacto de Varsóvia, por que a OTAN também não foi extinta?
a) Compreende-se, embora não se justifique, que Putin considere a Ucrânia parte da Rússia: foi o berço da civilização eslava, Kiev é anterior a Moscou.
b) A preocupação da Rússia é defensiva. Um foguete a partir da Ucrânia pode atingir Moscou em poucos minutos. Lembremo-nos da reação dos EUA com a instalação dos mísseis soviéticos em Cuba.
c) Como afirmava o americano J. F. Dulles, nas relações internacionais não há amizades, há interesses. A ética, na boa lição de Maquiavel, não conta.
d) A única exigência russa, antes da invasão, era de que a Ucrânia não entrasse na OTAN, e foi desconsiderada pelos interessados na guerra. Assim, só haverá paz com negociação e concessões. E só países não envolvidos no conflito podem conduzir tal negociação (podemos incluir aí a Alemanha e a França, altamente prejudicadas com a guerra). Lula foi muito infeliz na formulação desta questão tão elementar, mas neste ponto está certo. A História nos confirmará. Ou não? Eu penso, logo duvido.
Perfeito, Sérgio. Parabéns.
Perfeito. Temos que divulgar mais este artigo, acurado. Parabéns Sergio. A Rússia é invasora e nada justifica esta invasão. Apoia Putin é apoiar a extrema direita que ele financia no mundo inteiro. Apoiar a Ucrânia é apoiar a livre determinada dos povos, é apoiar a democracia.
Dois comentários prévios aos meus usaram a palavra perfeito para qualificar o artigo de Sérgio Buarque. Sou o terceiro a utilizar o mesmo adjetivo.
Putin retomou o expansionismo russo de Catarina II, do final do sec XVIII, contrariando dois acordos mais recentes, do sec XX.
Foi durante a plena existência da União Soviética, em 1954, que a Criméia foi definida com “oblast” da Ucrânia. O secretário do partido comunista soviético era Nikita Kruschev.. Quarenta anos depois, em 1994, depois da auto dissolução da União Soviética, a Rússia, juntamente com a Ucrânia, o Reino Unido e os Estados Unidos assinaram um tratado que confirmou as fronteiras da Ucrânia, país que então aderiu ao Tratado de Não -Proliferação das Armas Nucleares.