Poeta Lêdo Ivo

Poeta Lêdo Ivo

 

Na minha vida de rede social, que vai pelo sétimo ano a essa altura, a coisa mais bonita que eu li aconteceu num comentário que fez a querida Graça Ivo, na cola dos meus chistes sobre a Academia Brasileira de Letras. Ela se referiu ao pai, o poeta Ledo Ivo, e, generosamente, a mim, nos seguintes termos: “Você e meu pai seriam ótimos amigos: irreverentes, cultos, engraçados, destemidos e lutadores. Nada era impedimento para ele. Depois de 30 sessões de radioterapia, entrou no avião e foi rever Sevilha. Jantou polvo, camarão e tomou seu vinho preferido. Na volta, caminhando, sentiu-se mal e morreu em seguida nos braços do filho. Era véspera de Natal. Quis o Menino Jesus passar Seu aniversário com ele.”

Eu não trago em mim todas essas características marcantes que Graça via no pai, mas entendi bem o que ela quis dizer. Aos 65 anos, vivendo encastelado numa solidão dos diabos e, pior, sem a mínima disposição para cultivar lenga-lengas e conversa mole em quaisquer companhias, mesmo porque ando muito ocupado, eu gostei que ela, com seu refinado olhar nordestino, visse em mim os traços de um conterrâneo das antigas, o que é a única coisa que eu sou de verdade. E, enxergando tão longe, que ela pegasse essas características pela vertente boa, vendo nelas pré-condições adequadas para que eu fosse um bom amigo do homem excepcional que foi o seu pai, que não conheci, mas que vi e ouvi mais de uma vez para não mais esquecer.

Eu sei que do jeito que a humanidade anda desconfiada, para não dizer mesquinha, um ou outro gaiato vai pegar o parágrafo acima todinho para dizer que eu me vali da amizade com Graça e da memória do poeta para me promover, para embarcar numa ego trip, para dar um jeito de falar de mim mesmo, desta vez sob uma luz boa. Não importa. Vocês já devem ter observado que não perco o sono por conta dos insultos que de vez em quando recebo, e que, geralmente, ecoam o juízo – ou a falta de – de pessoas que se enrolam sozinhas. Então, se alguém disser isso, podem ficar tranquilos que eu vou receber os apupos com naturalidade, desconfiado até que eles possam conter um pouco de verdade.

Voltando às palavras de Graça, eu pensei em cada uma delas e, para fazer valer o raciocínio, eu inverteria a ordem de enunciação. Ao invés de irreverentes, cultos, engraçados, destemidos e lutadores, eu diria lutadores, destemidos, engraçados, cultos e irreverentes. Se eu não fosse lutador, nem que seja ao meu modo, já teria ido para o hospício. Não foi fácil fazer da vida o que queria, negociando para que ela me desse o que eu pedia, e não a ração que ela dá a quem é frouxo na peleja. Destemido, eu pergunto, como não ser? A coragem, acho que foi Homero Fonseca quem disse, é a arma do desvalido. Para os combates a que me habilitei, eu saí ao mundo com poucas armas, convenhamos. Fiz do 38 um canhão; e da garrucha uma metralhadora, sim senhor.

“Engraçado” eu não sou não, aí ficou por conta da bondade de Graça. Ou se sou, 80% de quem me cerca vai ter carradas de razão para achar que não, que eu sou na verdade um cabra muito do encrenqueiro, um pé de briga da moléstia, que sai mundo afora como se estivesse procurando briga. Como um homem assim pode ser engraçado? Só se for pela barriga protuberante, pelo par de olhos vesgos e pelo medo de pisar em falso e torcer o joelho. Para falar a verdade sem retoque, eu só tenho medo mesmo de coisas no joelho. Depois da dor sibilina que eu tive há uma semana, eu só trato meu joelho a pão de ló. Se ele tivesse uma boca, eu botaria uma colher de caviar na língua dele pra paparicar o danado. Quero dizer, o abençoado, especialmente esse da perna canhota, que é o que mais sofre com meu peso. Quando eu saio do carro e dou aquela arremetida para puxar o lombo, é aí ele que arca com a pena.

Como eu dizia, se a pessoa acha essas coisas engraçadas, pronto, aí pode rir ao me ver. Mas quanto a ser engraçado no sentido mais corrente da palavra, por aquilo que se diz, pela habilidade em dar nó nas palavras ou por fazer careta, aí eu não sou. O poeta Ledo era. Lembro dele entrando numa livraria no Recife, numa manhã ensolarada, e dando um abraço em Tarcísio, da Livro 7. Lembro de outra vez no Galeão em que ouvi uma voz que vinha de trás da coluna. Ri porque tinha quase certeza de que era ele. E era. Falava com Sarney, um homem que eu achava sinistro, mas que não é. Ele tinha graça. Eu, não.

Por fim, vamos aos dois adjetivos que Graça colocou na abertura e que eu remeti para a rabeira da fila: cultos e irreverentes. A cultura é coisa relativa. Eu entendo bem o que ela quis dizer, o que se aplica ao pai dela com folga e a mim em bem menor escala. Uma vez li que ser culto é falar bem alemão sem ser alemão. Serve? Então sou culto, mas tenho horror jurado a gente que avacalha a cultura e se vale dela para ser pernóstica. Ontem mesmo eu pensava nisso.

Tem uma mulher bonita numa dessas redes cujos escritos de vez em quando eu leio. É uma coroa bem apanhada, cheia de amigos ilustres e ciosa de colocar os pontos nos “is” no que diz e no que lê. Sinto que ela até tenta ser espirituosa e joga com habilidade com as palavras. Às vezes eu tenho a impressão de que seria bom almoçar com ela um dia, ela parece que mora perto do escritório e uma vez eu acho que me mandou o telefone. Mas quando você descasca as camadas da prosa elíptica, untuosa e excessivamente calculada, você percebe o azinhavre da presunção, da cultura pela cultura, do enciclopedismo, da citação nauseante das efemérides da Renascença. Eu fico apavorado. Se um dia eu cedo a tentação de sair com ela e se ela soltar uma ladainha daquela para enquadrar o debate, eu sou capaz de simular um AVC e cair de cara no molho de tomate. Se Ledo era um culto que curtia não-cultos, como tenho certeza que era o caso, então o paralelo de Graça é procedente.

Por fim, vamos ao irreverente. De novo, eu vejo aqui um traço nordestino, mais do que brasileiro. Eu vivo em São Paulo há mais de 40 anos. Viver aqui, é conviver com gente que veio de fora. Vou explicar para que não achem que estou repisando o óbvio. Os brasileiros com quem eu convivi, trabalhei e me relacionei aqui tinham, frequentemente, as digitais estrangeiras muito frescas. Da parte de pai, descendia de italiano; da mãe, de ucranianos; para eles, mesmo tendo só ouvido os ecos do Genocídio Armênio, a marca do sofrimento estava estampada naquele vinco que aparecia na testa da avó. Ou então eram pessoas que comiam como se estivessem em Baalbek ou Damasco. Ou então tinha passado necessidades na Coreia cuja guerra lhe esfacelou a família. Em suma, eram brasileiros, mas cheios de pegadas recentes de outras terras, de outros ares.

O que quero dizer? Que a atitude deles é outra diante do Brasil, do poder constituído, da autoridade, dos códigos do capital, que eles tratam de entender. Um nordestino cujos ancestrais chegaram aqui no século XVII, já teve tempo de sobra para destravar a língua e para se sentir à vontade nesse chão. Ainda hoje a minha companhia causa estranheza nos paulistanos. Para eles, eu sou sincero demais, eu me imponho demais, eu pergunto demais, eu provoco demais. “Easy, Goldie, easy”, foi o que eu mais ouvi de uma ex. No final, tudo dando certo, sou irreverente porque não ligo nem para o apupo nem para o elogio.

“Nada era impedimento para ele”, diz Graça sobre o velho Ledo. Entendo bem o que ela quis dizer. Tem a ver com a irreverência e com uma certa autoconfiança que só o domínio da gramática da vida dá. A literatura dá guarida ao flibusteiro, ao escroque, ao poderoso, ao esnobe, ao ladrão, ao despreparado, ao blefador, ao santificado, ao debochado, ao ingênuo, ao sonhador. Quando nos deparamos com essas figuras ao nosso lado, nós não nos apavoramos porque eles nos oferecem um privilegiado campo de observação. Assim são os obstáculos, os entraves, a burocracia, a cartilha dos poderosos e suas redomas de proteção que visam a nos intimidar, a nós os ranhetas como ele e eu, que temos conversa para discutir com o papa, o mufti, o grão-rabino, o pedinte, o desvalido, o desgraçado, o presidiário, o carroceiro, o calunga e a lavadeira que vara a cidade com uma trouxa na cabeça.

De fato, não é impedimento para que, sem sermos vulgares, atravessemos as hierarquias, desnudemos o dogma, tentemos fazer a nossa vontade, desfraldemos nossa bandeira, não importa quão pouco popular, muito pelo contrário. Crescemos no respeito às hierarquias do mundo dos desiguais, mas ignoramos, no momento devido, a distância de poder porque confiamos no teor do que temos a dizer. A palavra nos dá força e subjuga nosso medo, o verbo nos ilumina e faz as vezes do nosso arco. É ele que nos projeta e vivifica. Onde há lugar para o medo?

Por fim, temos Sevilha e a morte que todo mundo sonhou em ter. Imagino, mas só imagino, o filme que passava na cabeça do poeta quando decidiu rever a Andaluzia, para espanto de quem o viu aguentar um tratamento torturante e, ainda assim, dar espaço ao sonho. Como ele, eu teria escolhido a mesma cidade. É de lá que eu trago algumas das melhores lembranças das errâncias pelo mundo. Impregnado de João Cabral de Melo Neto, que dizia, com razão, que se tratava da cidade mais feliz do mundo, é boa ideia passar da Maestranza à ponte do Guadalquivir. E, se for o caso, morrer à sombra da Giralda com passos de tablado escutados ao longe. Assim morrem os valentes de verdade. Obrigado, Graça.