gnorancy – by Oluwaseun Akinlo (Nigeria)

Ignorancy – by Oluwaseun Akinlo (Nigeria)

 

Se formos menos ignorantes sobre a ignorância, talvez ela não nos cause tanto mal. A ignorância, ao contrário do que parece, não é um oceano monolítico; pelo contrário: é multiforme: “aprendida”, “ativa”, “deliberada”, “seletiva”, “pura”, etc. Embora milenar como o próprio conhecimento, a ignorância só passou a ser estudada há uns 30 anos. A língua grega, mais uma vez, empresta seu prestígio filosófico aos termos desses novos estudos. Tem-se, assim, a “agnoiologia” (“o estudo da ignorância”) e a “agnotologia” (“o estudo da produção da ignorância”). É o que nos informa, em seu mais recente livro, o grande historiador britânico Peter Burke, aliás há muito conhecido do leitor brasileiro. Refiro-me à obra “Ignorância: uma história global”.

Com seu humor inglês, Burke como que antecipa suas desculpas a assuntos e partes do mundo que deixou de lado em seu erudito estudo: “Minha razão é simples […]: ‘Ignorância, madame, pura ignorância’, como o escritor Samuel Johnson certa vez explicou a uma senhora que apontou um erro em um de seus livros”. O fato, diz o historiador, é que o assunto vem “[…] despertando um interesse crescente, estimulado pelos espetaculares exemplos de ignorância dos presidentes Trump, nos Estados Unidos, e Bolsonaro, no Brasil, para não falar de outros governos”. Enfim, talvez possamos dizer que a ignorância está na moda e, fazendo eco a outros analistas, dizer que, de par com a Era da Informação, também vivemos numa Era da Ignorância ou, pelo menos, da Desinformação. No fundo, é como disse Mark Twain, citado no livro, “Somos todos ignorantes, só que sobre coisas diferentes”…

Casado com uma brasileira, a também historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke (autora de “Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos”), Peter Burke não é apenas conhecido dos brasileiros, mas também conhece bem o Brasil (o país é várias vezes citado em “Ignorância”), daí compreendermos por que Leonel Brizola acompanha Francesco Petrarca nas epígrafes do livro. Do poeta, o historiador colheu as palavras: “Será que poderia haver um campo mais amplo do que… um tratado sobre a ignorância?”. Do político brasileiro, este achado irretocável: “A educação não é cara. Cara mesmo é a ignorância”.

Não obstante a modéstia de Burke, é possível constatar sua imensa erudição pelo elenco de notas e de autores citados (daí fazer falta à edição brasileira um índice  onomástico, o que sempre facilita o estudo, a consulta e a pesquisa). Se há uma óbvia e inevitável ignorância nesse grande livro do historiador inglês, é uma ignorância nos moldes daquela “Douta Ignorância” do célebre Nicolau de Cusa, com a qual, segundo o próprio Peter Burke, o pensador queria dizer “[…] que era possível alcançar o conhecimento da própria ignorância”.

Num esforço tão louvável quanto titânico, Burke procura, por assim dizer, cercar a ignorância por todos os lados. Mas, às inúmeras características de tal matéria, talvez pudéssemos acrescentar mais uma: escorregadia, o que mostra, em negativo, as mãos firmes de nosso autor. Por outro lado, o historiador vê a ignorância sob vários ângulos disciplinares: o histórico (incontornável, obviamente), o político, o psicológico, o filosófico, etc., mas também se detém nas implicações práticas e sociais e nos efeitos nocivos do exercício da ignorância. Enfim, o historiador social não se afasta de um olhar político e pragmático.

A narrativa da “derrota da ignorância pelo conhecimento”, tão cara a certas correntes de um “progresso inevitável”, é explicitamente rechaçada por Burke. Todo o seu livro, diz ele, é uma argumentação de que “[…] a ascensão de novos conhecimentos ao longo dos séculos envolveu necessariamente a ascensão de nova(s) ignorância(s). Coletivamente, a humanidade sabe mais do que nunca, mas, individualmente, não sabemos mais do que nossos predecessores”.

Com efeito, não se pode negar que o triunfalismo do progresso caiu em descrédito e que, numa era pitorescamente chamada de “pós-verdade”, a desinformação é uma névoa a promover confusão de toda espécie. Não por acaso, há um soluço profundo nas democracias, e não sem motivo andam de crista alta os defensores de uma “ignorância deliberada”, os quais, por sua vez, manipulam a ignorância dos que não se sabem ignorantes. De par com sua densidade cultural e histórica, o livro de Burke é um alerta precioso e uma luz que dispersa o desespero de quem ama o conhecimento num tempo em que a ignorância é mais uma vez perversamente instrumentalizada.