Oppenheimer

Oppenheimer

 

O Prometeu americano, como é chamado J. Robert Oppenheimer na biografia de Kai Bird e Martin J. Sherwin, liderou o Projeto Manhatan, que construiu a primeira bomba atômica da História, dando um salto no poder destrutivo das guerras, evidenciado pela morte de mais de 200 mil japoneses em Hiroshima e Nagasaki. Como o mito grego, ele foi condenado a passar o resto da vida amarrado à culpa pelo massacre e à responsabilidade pela intensificação da ameaçadora corrida nuclear nas disputas geopolíticas mundiais, angustiado com o drama moral de ser o “mensageiro da morte”. O filme “Oppenheimer” retrata a atuação do físico, colocando a ciência a serviço da guerra com a produção da arma de destruição em massa, e mostra os seus dilemas morais e geopolíticos no meio de um grande conflito mundial. 

No início da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha tinha a maior densidade de físicos e matemáticos do mundo dedicados à pesquisa da fissão nuclear, que logo despertaria interesses políticos e militares. Alertados por vários cientistas, incluindo Albert Einstein e Leo Szilard (alemães exilados nos Estados Unidos), da ameaça de a Alemanha nazista produzir uma bomba atômica de grande poder destrutivo, os governos dos Estados Unidos e do Reino Unido passaram a estimular a pesquisa científica e a sua utilização no desenvolvimento de um artefato nuclear. A guerra avançava na Europa e, a partir de 1940, no rastro dos avanços da física atômica, começava uma corrida entre a Alemanha nazista e os Aliados pelo domínio militar da reação em cadeia da fissão nuclear, o que poderia provocar um profundo desequilíbrio do poder armamentista. 

Como grande parte dos físicos da época era de origem judaica, incluindo o próprio Oppenheimer, é provável que o antissemitismo do nazismo tenha ajudado a atrasar o programa nuclear da Alemanha. Muitos físicos de destaque fugiram da Alemanha, mesmo antes do início da guerra, e foram para o Reino Unido e para os Estados Unidos, e vários deles, procurando escapar da perseguição nazista, engajaram-se no esforço norte-americano de construção da bomba atômica. Num dos diálogos do filme, Oppenheimer afirma que o Projeto Manhatan superaria a Alemanha na corrida nuclear porque Hitler não confiava nos judeus que trabalhavam nos centros de pesquisa. Além disso, existem informações de que, por motivos morais e políticos, os físicos alemães, liderados por Werner Heisenberg, teriam feito corpo mole no esforço de construção de uma bomba de elevado poder destrutivo. 

Conflitos morais e preocupações geopolíticas em plena guerra contra o poderio nazista acompanham todo o roteiro do filme. O grande físico quântico, Niels Born, recusou apoiar Oppenheimer na construção de uma bomba de elevado poder destrutivo e de desdobramentos imprevisíveis, mesmo sabendo do risco que seria a Alemanha nazista ser a primeira a deter o poderio nuclear. Pode-se imaginar que, neste caso, as primeiras vítimas de uma bomba atômica seriam Londres e Moscou, e não Hiroshima e Nagasaki, mudando completamento o curso da guerra com a consolidação do domínio nazista na Europa e na Eurásia. Enquanto Born e outros cientistas, com motivações morais, assumiam posição radicalmente contrária à corrida nuclear, o que norteava o engajamento de Oppenheimer era a convicção de que os Aliados tinham que chegar primeiro no domínio da poderosa arma, para impedir o expansionismo de Hitler e o domínio nazista no mundo. 

Os Estados Unidos chegaram primeiro. Mas, em 16 julho de 1945, quando do primeiro teste nuclear bem sucedido, a guerra na Europa já tinha acabado, com a derrota do nazismo e a capitulação de uma Alemanha destruída e humilhada. Para Oppenheimer, a arma não deveria ser utilizada, devendo constituir apenas uma reserva de poder dos Estados Unidos para conter novas aventuras militaristas. Ele pensava que bastaria que o governo norte-americano informasse ao mundo, principalmente aos Aliados na Conferência de Potsdam, que era detentor do enorme poderio nuclear, para que pudesse negociar uma paz duradoura. Mesmo assim, como afirma o historiador Alex Wellerstein, Oppenheimer esteve presente nas reuniões do governo dos Estados Unidos que decidiram lançar as bombas sobre o Japão, único país ainda em guerra, e na escolha das cidades que seriam atingidas. O grande físico demonstrava a sua ingenuidade política, imaginando que o governo norte-americano iria guardar o artefato nuclear para uma reserva de poder de dissuasão de novas investidas militares. E por supor que as outras grandes potências iriam se acomodar diante do monopólio norte-americano, e renunciar a uma corrida acelerada para a produção da sua própria bomba atômica. 

O certo é que, menos de um mês depois do teste Trinity no Novo México, e apenas quatro dias após a conclusão da Conferência de Potsdam, quando os Aliados tomaram conhecimento do poder nuclear, os Estados Unidos lançaram a bomba sobre Hiroshima (e três dias depois, sobre Nagasaki). Oppenheimer podia até comemorar o resultado de três anos de pesquisa e inovação tecnológica, sentimento misturado com a culpa pela morte de milhares de japoneses, nas duas cidades escolhidas para demonstração do poder destrutivo da única potência nuclear. 

O objetivo dos Estados Unidos não era, evidentemente, vencer o Japão, que continuava a guerra no Pacífico, mas não tinha condições de manter o confronto depois que a Alemanha foi destruída. As bombas de Hiroshima e Nagasaki foram, antes de tudo, um recado à União Soviética, aliado de ontem e novo inimigo no confronto geopolítico e ideológico global. Os biógrafos de Stalin falam do pânico que ele teria sentido quando foi informado da bomba e do massacre da cidade. Naquele momento, começou a Guerra Fria. E a União Soviética pôde intensificar os esforços na produção da sua bomba, graças a informações científicas e técnicas transferidas por espiões de dentro do Projeto Manhatan.  

Cinco anos depois da explosão nuclear nas cidades japonesas, a União Soviética entrou no clube restrito de detentores da bomba atômica, quebrando o monopólio norte-americano da mensagem da morte, e iniciando o que os estrategistas chamam de “equilíbrio do terror”. Curiosa a afirmação de Theodore Hall, o físico do Projeto Manhatan, um dos espiões soviéticos:  “Durante o ano de 1944, eu estava preocupado com os perigos de um monopólio americano de armas atômicas, se houvesse uma depressão pós-guerra”. Desde então, o mundo vive assustado com a formação de grandes arsenais atômicos das grandes potências, criando o equilíbrio do terror, segundo o qual nenhuma grande potência toma a iniciativa de utilizar a bomba devido ao elevado poder de retaliação da vítima.

O Acordo de Não Proliferação de Armas Nucleares, assinado em 1968, não impediu que nove países detenham hoje um arsenal nuclear, especialmente as grandes potências: Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido. Na história recente, houve um momento de alto risco de uma catástrofe nuclear no incidente dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962, felizmente contido pela negociação dos governos da então União Soviética e dos Estados Unidos. Mas agora, quando o filme “Oppenheimer” mostra o Prometeu desafiando os deuses, o mundo volta a temer um confronto nuclear, com as reiteradas ameaças de Vladimir Putin, presidente da Rússia, de recorrer ao seu arsenal para atacar a Ucrânia, desafiando o elevado poder de retaliação da OTAN e o futuro da humanidade.