Diz-se, em termos técnicos, que a moeda circula, sendo crucial para o funcionamento da economia. Pode-se fazer paródia com corpo e cérebro humano, cujo complexo modo integrado de operação não se daria sem a circulação do sangue. Assim, não pareceria inapropriado afirmar que a moeda é o sangue da economia.
A paródia pode ser expandida, rememorando-se uma cena urbana testemunhada por acadêmicos em Salvador, Bahia, em tempos idos. Um pequeno grupo havia acorrido a um barzinho, e confrades recorriam a uma cervejinha para a costumeira socialização pós-trabalho. Um sinal de trânsito – o “semáforo” de hoje – abria e fechava ciclicamente, na esquina próxima, cumprindo seu papel de garantir adequada circulação de veículos.
À tardinha virara noite, a conta havia sido pedida. Um repentino freio foi ouvido, ao que se seguiu uma arrancada. Entre os que podiam ver o sinal, um exclamou: “eita!, avançou o sinal vermelho” – assim, sujeito oculto. Do outro lado da mesa, um confrade sem visão privilegiada perguntou: “e o guarda, multou?”. “Não. Sem guarda”, disse o primeiro. Outro, espirituoso, riu e tascou: “se não tem guarda, não tem multa”. Ou seja, “não tem sinal vermelho”. Ampla risadagem. Um gaiato na mesa vizinha completou: sinal sem multa é fantasma. Quem obedece a fantasma? A risadagem tomou mais fôlego. Unanimidade formada, ao arrepio do destaque que a noite dava à sinalização sem guarda.
Sabe-se que a sinalização do trânsito urbano, até os tempos atuais de semáforos, teve inovações como maior diâmetro da luz vermelha, para conveniente destaque; e sinais em duplicidade, para garantir visibilidade. Nada disso dispensara o guarda. Vieram os sinais com sensores e câmaras: eita, agora está lá “o guarda”, sempre.
O aprendizado levou a que em outras áreas da vida “sinais” fossem instituídos, a exemplo do limite ao gasto público. Foi o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), parte dos avanços institucionais depois do nascimento da relativamente longeva moeda Real. Tivemos inédito avanço em termos de contenção inflacionária, neste país procrastinador na adoção de maior disciplina fiscal. E a LRF contemplou o “guarda”, estabelecendo-se penalidades a gestores. Infelizmente, nem então, e ainda não, um modo de crescimento satisfatório foi estabelecido. Mas isso é tema que exigiria outra empreitada; fiquemos na gaveta da questão fiscal.
Ocorre que, na economia, volta-se a temeridades fiscais, quando a oportunidade é de avançar na racionalidade fiscal, depois de mal aproveitado, sem ser melhorado, o teto de gastos. Um novo modo de limitar o gasto público vem sendo gestado, com um título um tanto “sofisticado”: arcabouço fiscal. No entanto, foi abolida a penalidade aos infratores; o “guarda” foi retirado.
Novamente recorrendo a um paralelo, aventamos dizer que a tal contingência poderia ser aplicado o que se dizia da pintura das fachadas das casas no Brasil colonial: [o novo arranjo] é para inglês ver? E aqui revisitemos o ambiente em que são discutidos preceitos da Economia e naturalmente buscadas inovações. A pós-graduação em universidades tem bem estabelecido o doutorado como patamar a ser alcançado. Mas, como brasileiro gosta de título, surgiu o “pós-doutorado”; com a benção de órgãos como o CNPq e a CAPES, que incorporaram o novo “título” (via certificado, sem diploma, sem banca de exame, aquilo que a simples graduação requer para o Trabalho de Conclusão de Curso). Não se duvida que estágios de pós-doutorado trazem importante contribuição à dinâmica da produção de saber, quando menos pelo enriquecimento proporcionado por exposição e vivência em ambiente acadêmico diverso. Poderiam, também, ser estimulados para períodos sabáticos. Mas, a ascensão a título não seria para brasileiro ver?
Enfim, um novo instrumento para assegurar limites ao gasto público foi aprovado pelo Congresso e aplaudido pelo segmento empresarial. No entanto, na esfera de especialistas e de expectativas, subsistem interrogações sobre a sustentação fiscal da economia nos próximos anos.
Estaríamos em um novo mundo? Se for o caso, para que “guarda”, não é… No entanto, sem “guarda” não se tem efetivo sinal. Há quem defenda que a inflação pode ser controlada eliminando-se a independência do Banco Central. Tudo poderia ser visto como uma questão de narrativa… Será?
Ainda que o motorista brasileiro possa se considerado campeão de irresponsabilidade no trânsito, não chega a ser campeão de irresponsabilidade fiscal, título que pertence tristemente aos argentinos. Não é verdade que as novas regras fiscais (o arcabouço fiscal aprovado no Congresso) “não tem guarda no sinal”. Tem sim, duas sanções automáticas. Se o gasto aumenta além do que está previsto na regra, há gatilhos automáticos de redução do gasto já no ano seguinte. E, dois anos depois, o fator de 70% do aumento da receita é reduzido para 50%. Isto é, existem penalidades quando o aumento do gasto primário de um ano ultrapassa os 70% de aumento da receita do ano anterior. O problema é que isso vale a partir de 2024. Então os autores podem dizer que “o radar no farol está quebrado”, mas só para 2023.
Helga,
Trata-se de amarras no âmbito fiscal. Se nem isso tivesse lugar, seria escandaloso. Para os autores, o guarda era a punição ao gestor público.
A punição ao gestor público, em tese, chegará quando ele descumprir as duas sanções iniciais previstas na lei. Além de que, como sempre vimos, e vimos de novo com o teto de gastos, sempre há alguma chicana jurídica para ontornar ou modificar a punição. Mais importante é convencer o público em teral de que a responsabilidade fiscal é necessária, como vocês fazem, para não termos, por exemplo, esse cabo de guerra entre o Ministro da Fazenda Fernando Haddad e o PT raiz, mais todos os que são antes de mais nada demagógicos e “cortoplacistas”, só pensam na eleição mais próxima.